O filme Conclave
(2024), de Edward Berger, está em cartaz há algum tempo e com muitas indicações
a prêmios. Ele se baseia no romance homônimo de Robert Harris, que traduzi há
poucos anos para a Alfaguara, e que já comentei aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/11/4643-conclave-eleicao-de-um-papa.html
O filme é muito bom, com excelente direção de arte,
fotografia, elenco, os habituais suspeitos de quando se elogia um filme.
Para quem ainda não conhece, um breve resumo:
A história começa com a morte de um Papa cujo nome nunca
é pronunciado, um Papa de perfil modernizador (como o atual Papa Francisco). Na noite de sua morte já começa a luta
subterrânea pelo Poder. Vai ter início o “conclave”, o processo da eleição do
novo Papa, a ser conduzido pelo Cardeal Lawrence (no livro, o Cardeal Lomeli),
interpretado por Ralph Fiennes.
Os principais candidatos são o canadense Tremblay (John
Lithgow), o nigeriano Adeyemi (Lucian Msamati), o norte-americano Bellini
(Stanley Tucci) e o italiano Tedesco (Sergio Castellitto). E entre eles começa
uma ciranda de denúncias, traições, conspirações, maledicências, em que os
partidários de cada um tentam bombardear as aspirações dos demais.
Aconselho o filme, que, sem ser uma obra excepcional,
produz um suspense razoável, com sua teia de mistérios e surpresas “tiradas da
manga” pelo autor da trama. E o filme tem a vantagem adicional de projetar na
tela grande a espantosa capacidade da Igreja Católica Romana para a pompa, a
circunstância, a beleza visual.
É um mundo monumental, colorido, em que insensivelmente
somos levados a erguer os olhos para o céu o tempo inteiro. E não exatamente
para o céu atmosférico, mas para os tetos pintados da Capela Sistina, e outros
ambientes deslumbrantes. Os interiores do Vaticano não uma enorme
história-em-quadrinhos em escala colossal, criada pelos maiores artistas do
Renascimento. Artistas que séculos depois não foram superados.
A arquitetura, a pintura e a escultura se juntam para
produzir um ambiente de exaltação intelectual e afetiva, principalmente
naqueles homens velhos, calejados, que dedicaram a vida inteira à crença
irrestrita naquelas imagens. Vivem cercados, como dizia o poeta, por “Gênios!
Deuses! Esferas! Astros! Mundos!...”
E no meio dessa exaltação renascentista, desse verdadeiro parque-temático bíblico, ocorrem
as conspirações.
O Vaticano é certamente um dos lugares onde mais se
conspira à sorrelfa, à socapa. Onde homens taciturnos e poderosos pegam no
braço de outro e o levam a um canto do salão para fazer uma revelação
bombástica à meia-boca, para exigir juramentos de segredo e silêncio, para acenar
promessas de poder.
Imagino que essas redes de intrigas ocorram igualmente em
lugares como a sede do Partido Comunista Chinês... o Pentágono... os corredores
da ONU... o Congresso Nacional... Verdade, mas em nenhum desses lugares os
conluios mafiosos acontecem cercados de tanta espiritualidade e transcendência
artística. O Vaticano, sem dúvida alguma, consegue juntar as duas pontas
extremas da civilização.
Conclave é um
filme sobre tramóias políticas, não sobre a salvação da alma, embora esse tema seja
parte tão integrante daquele mundo quanto o mármore e a púrpura.
O roteiro é de Peter Straughan, cujo nome desconheço e
fui checar. Ele é o responsável por pelo menos dois filmes muito bem escritos: Os Homens Que Encaravam Cabras (2009) de
Grant Heslov, e Tinker, Tailor, Soldier,
Spy (2011) de Tomas Alfredson, baseado em John Le Carré. Competência não
lhe falta.
O que falta ao filme, então? Meu palpite é que falta literatura.
Quando a gente passa semanas a fio traduzindo um livro, a
gente faz um mergulho mental naquele universo. É como se cada frase do livro
estivesse bordada num pano, em letra cursiva, e a gente precisasse desmanchar
aquele bordado sem partir a linha, e depois bordar com ela uma frase
equivalente em outro idioma.
O filme Conclave reconstitui
com perfeição visual a ambientação do
livro, que ao traduzir pesquisei exaustivamente no Google, para ter idéia
daqueles salões, daqueles saguões, refeitórios, capelas, dormitórios, o
micro-ambiente onde a história acontece.
O filme tem um ótimo elenco, com pelo menos três atores
que admiro bastante (Fiennes, Lithgow, Tucci) e um que eu não conhecia e me
surpreendeu positivamente, Sergio Castellitto, que faz o reacionário e
ameaçador Cardeal Tedesco. No livro, é um velhinho maquiavélico mas fisicamente
frágil; no filme, Castellito o transforma num leão vicioso, acuado.
(Sérgio Castellitto, como o "Cardeal Tedesco")
O problema é que no livro a narrativa acompanha o Cardeal
Lawrence/Lomeli, o organizador do conclave, acompanha suas ações, seus
pensamentos, suas hesitações íntimas, suas conjeturas, suas desconfianças, suas
hipóteses silenciosas. A narrativa é na terceira pessoa, mas é aquela “terceira
pessoa” que vai tempo inteiro colada ao personagem, escutando seu monólogo
intimo.
Por duas vezes ele se levantou da cama e foi até a porta, e por duas
vezes voltou e se deitou novamente. Ele sabia, é claro, que não haveria nenhum
clarão ou revelação súbita, nenhuma infusão repentina de certeza. Não esperava
nada desse tipo. Deus não agia dessa forma. Deus já lhe mandara todos os sinais
necessários. Cabia a ele agora agir de acordo. E talvez ele tivesse sempre
suspeitado de que teria que fazer aquilo afinal, e era esta a razão de não ter
devolvido a chave-mestra, que tinha ficado guardada na gaveta de sua mesa de
cabeceira.
(trad. BT)
Lawrence/Lomeli é aquele costumeiro cristão sincero, retalhado
por dúvidas, a toda hora achando-se insuficiente, inadequado, indigno das altas
tarefas que lhe cabem, consciente de suas fraquezas humanas. Mas é um homem
eticamente obstinado, que cultiva uma lealdade ferrenha para com o falecido
Papa. E sua angústia muda de foco a cada capítulo, à medida que revelações
comprometedoras vão surgindo sobre os principais candidatos ao Trono de São
Pedro.
(Ralph Fiennes, como o "Cardeal Lawrence")
Lawrence/Lomeli muda de rumo a cada capítulo, apoiando
ora este, ora aquele (sempre no íntimo, sem fazer proselitismo externo –
afinal, ele é o responsável geral pela eleição). Dedica-se, com estoicismo, à politicagem
miúda de conversar com um, com outro, com este grupo, com aquele...
No livro, esse varejo de influências pode ser (e é) mais
bem esmiuçado do que no filme, que mantém na maior parte do tempo uma narrativa
distanciada, hierática, formal.
E à medida que os candidatos eticamente comprometidos vão
sendo cancelados – em grande parte pela própria atividade fiscalizadora de Lawrence/Lomeli
– a narrativa vai mudando de foco aos poucos, e o nobre Cardeal começa a se
revelar o famoso Narrador Não Confiável. Ele começa a perceber que à medida que
derruba os candidatos indignos, está fechando as possibilidades em torno do
nome de um único candidato que ele considera o menos indigno – ele
próprio. E a mosca azul do poder começa
a zumbir em torno do juízo do bom cardeal.
O cinema pode ter um zilhão de vantagens sobre a
literatura; mas a principal vantagem que esta tem sobre ele é a capacidade de
reproduzir, com clareza constante e sem esforço aparente, o que as pessoas pensam,
seus sentimentos, suas intenções, seus atos-falhos, suas presunções de grandeza,
seus pontos-cegos mentais.
Nem falo de recursos modernistas e sofisticados como o
“fluxo de consciência” (stream of
consciouness) ou o monólogo interior. Estas são conquistas da literatura de
cem anos atrás, já devidamente assimiladas (e simplificadas) pela literatura
“mainstream”, comercial, que qualquer leitor lê e interpreta sem esforço
excessivo.
É a simples reprodução do que se passa na mente do
personagem, inclusive raciocínios complexos e factuais (as deduções de um
detetive, p. ex.) que nenhum ator ou atriz, por melhor que seja, pode
reconstituir com a fisionomia ou a linguagem corporal.
Existe sempre o recurso da voz em “off”: vemos o ator
pensativo, e na trilha sonora escutamos sua voz, bem baixinho, dizendo o que ele
pensa. Mas (como dizia um roteirista amigo meu) “a voz em off é o derradeiro recurso dos incompetentes”.
O filme Conclave
nos dá a narrativa quase completa. Um enredo cheio de informações curiosas
sobre a Igreja Católica, sobre a política contemporânea, etc.; o que não
consegue nos dar é a trajetória tortuosa da mente do Cardeal Lawrence/Lomeli,
por mais que o ótimo Ralph Fiennes defenda o papel com bravura.
O livro (lá vou eu repetir um chavão de sempre) é mais
completo que o filme, é mais profundo, é mais detalhado, mais esclarecedor, e
nos permite ver cada personagem “por dentro”, de uma maneira que nem o melhor
câmera e o melhor ator conseguem nos transmitir. (Conseguem outras coisas que a
literatura não alcança, é claro—as coisas que são do domínio do cinema
propriamente dito, o “específico fílmico”.)
O livro Conclave
me deixou com vontade de ver o filme. Se eu tivesse visto primeiro o filme, não
sei se teria vontade de ler o livro, porque o filme não dá tantas pistas de todos
os subtextos de complexidade que há na prosa original.
Comparar livros e filmes é um jogo onde nunca se ganha.
Como dizia o heroizinho de Machado de Assis: “Ganha-se a vida, perde-se a
batalha!”. Ou o contrário, quem sabe?
[ CONCLAVE cabeça
]
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