segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

5138) "Conclave", o filme (30.12.2024)



 
O filme Conclave (2024), de Edward Berger, está em cartaz há algum tempo e com muitas indicações a prêmios. Ele se baseia no romance homônimo de Robert Harris, que traduzi há poucos anos para a Alfaguara, e que já comentei aqui: 
 
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/11/4643-conclave-eleicao-de-um-papa.html
 
O filme é muito bom, com excelente direção de arte, fotografia, elenco, os habituais suspeitos de quando se elogia um filme. 
 
Para quem ainda não conhece, um breve resumo: 
 
A história começa com a morte de um Papa cujo nome nunca é pronunciado, um Papa de perfil modernizador (como o atual Papa Francisco).  Na noite de sua morte já começa a luta subterrânea pelo Poder. Vai ter início o “conclave”, o processo da eleição do novo Papa, a ser conduzido pelo Cardeal Lawrence (no livro, o Cardeal Lomeli), interpretado por Ralph Fiennes.  
 
Os principais candidatos são o canadense Tremblay (John Lithgow), o nigeriano Adeyemi (Lucian Msamati), o norte-americano Bellini (Stanley Tucci) e o italiano Tedesco (Sergio Castellitto). E entre eles começa uma ciranda de denúncias, traições, conspirações, maledicências, em que os partidários de cada um tentam bombardear as aspirações dos demais.  
 
Aconselho o filme, que, sem ser uma obra excepcional, produz um suspense razoável, com sua teia de mistérios e surpresas “tiradas da manga” pelo autor da trama. E o filme tem a vantagem adicional de projetar na tela grande a espantosa capacidade da Igreja Católica Romana para a pompa, a circunstância, a beleza visual. 




É um mundo monumental, colorido, em que insensivelmente somos levados a erguer os olhos para o céu o tempo inteiro. E não exatamente para o céu atmosférico, mas para os tetos pintados da Capela Sistina, e outros ambientes deslumbrantes. Os interiores do Vaticano não uma enorme história-em-quadrinhos em escala colossal, criada pelos maiores artistas do Renascimento. Artistas que séculos depois não foram superados.  
 
A arquitetura, a pintura e a escultura se juntam para produzir um ambiente de exaltação intelectual e afetiva, principalmente naqueles homens velhos, calejados, que dedicaram a vida inteira à crença irrestrita naquelas imagens. Vivem cercados, como dizia o poeta, por “Gênios! Deuses! Esferas! Astros! Mundos!...”  



E no meio dessa exaltação renascentista, desse  verdadeiro parque-temático bíblico, ocorrem as conspirações. 
 
O Vaticano é certamente um dos lugares onde mais se conspira à sorrelfa, à socapa. Onde homens taciturnos e poderosos pegam no braço de outro e o levam a um canto do salão para fazer uma revelação bombástica à meia-boca, para exigir juramentos de segredo e silêncio, para acenar promessas de poder. 
 
Imagino que essas redes de intrigas ocorram igualmente em lugares como a sede do Partido Comunista Chinês... o Pentágono... os corredores da ONU... o Congresso Nacional... Verdade, mas em nenhum desses lugares os conluios mafiosos acontecem cercados de tanta espiritualidade e transcendência artística. O Vaticano, sem dúvida alguma, consegue juntar as duas pontas extremas da civilização. 
 
Conclave é um filme sobre tramóias políticas, não sobre a salvação da alma, embora esse tema seja parte tão integrante daquele mundo quanto o mármore e a púrpura. 
 
O roteiro é de Peter Straughan, cujo nome desconheço e fui checar. Ele é o responsável por pelo menos dois filmes muito bem escritos: Os Homens Que Encaravam Cabras (2009) de Grant Heslov, e Tinker, Tailor, Soldier, Spy (2011) de Tomas Alfredson, baseado em John Le Carré. Competência não lhe falta. 
 
O que falta ao filme, então?  Meu palpite é que falta literatura. 
 
Quando a gente passa semanas a fio traduzindo um livro, a gente faz um mergulho mental naquele universo. É como se cada frase do livro estivesse bordada num pano, em letra cursiva, e a gente precisasse desmanchar aquele bordado sem partir a linha, e depois bordar com ela uma frase equivalente em outro idioma. 
 
O filme Conclave reconstitui com perfeição visual a ambientação do livro, que ao traduzir pesquisei exaustivamente no Google, para ter idéia daqueles salões, daqueles saguões, refeitórios, capelas, dormitórios, o micro-ambiente onde a história acontece. 
 
O filme tem um ótimo elenco, com pelo menos três atores que admiro bastante (Fiennes, Lithgow, Tucci) e um que eu não conhecia e me surpreendeu positivamente, Sergio Castellitto, que faz o reacionário e ameaçador Cardeal Tedesco. No livro, é um velhinho maquiavélico mas fisicamente frágil; no filme, Castellito o transforma num leão vicioso, acuado.  



(Sérgio Castellitto, como o "Cardeal Tedesco")

 
O problema é que no livro a narrativa acompanha o Cardeal Lawrence/Lomeli, o organizador do conclave, acompanha suas ações, seus pensamentos, suas hesitações íntimas, suas conjeturas, suas desconfianças, suas hipóteses silenciosas. A narrativa é na terceira pessoa, mas é aquela “terceira pessoa” que vai tempo inteiro colada ao personagem, escutando seu monólogo intimo. 
 
Por duas vezes ele se levantou da cama e foi até a porta, e por duas vezes voltou e se deitou novamente. Ele sabia, é claro, que não haveria nenhum clarão ou revelação súbita, nenhuma infusão repentina de certeza. Não esperava nada desse tipo. Deus não agia dessa forma. Deus já lhe mandara todos os sinais necessários. Cabia a ele agora agir de acordo. E talvez ele tivesse sempre suspeitado de que teria que fazer aquilo afinal, e era esta a razão de não ter devolvido a chave-mestra, que tinha ficado guardada na gaveta de sua mesa de cabeceira. 
(trad. BT) 
 
Lawrence/Lomeli é aquele costumeiro cristão sincero, retalhado por dúvidas, a toda hora achando-se insuficiente, inadequado, indigno das altas tarefas que lhe cabem, consciente de suas fraquezas humanas. Mas é um homem eticamente obstinado, que cultiva uma lealdade ferrenha para com o falecido Papa. E sua angústia muda de foco a cada capítulo, à medida que revelações comprometedoras vão surgindo sobre os principais candidatos ao Trono de São Pedro. 



(Ralph Fiennes, como o "Cardeal Lawrence") 

 
Lawrence/Lomeli muda de rumo a cada capítulo, apoiando ora este, ora aquele (sempre no íntimo, sem fazer proselitismo externo – afinal, ele é o responsável geral pela eleição). Dedica-se, com estoicismo, à politicagem miúda de conversar com um, com outro, com este grupo, com aquele... 
 
No livro, esse varejo de influências pode ser (e é) mais bem esmiuçado do que no filme, que mantém na maior parte do tempo uma narrativa distanciada, hierática, formal. 
 
E à medida que os candidatos eticamente comprometidos vão sendo cancelados – em grande parte pela própria atividade fiscalizadora de Lawrence/Lomeli – a narrativa vai mudando de foco aos poucos, e o nobre Cardeal começa a se revelar o famoso Narrador Não Confiável. Ele começa a perceber que à medida que derruba os candidatos indignos, está fechando as possibilidades em torno do nome de um único candidato que ele considera o menos indigno – ele próprio.  E a mosca azul do poder começa a zumbir em torno do juízo do bom cardeal. 
 
O cinema pode ter um zilhão de vantagens sobre a literatura; mas a principal vantagem que esta tem sobre ele é a capacidade de reproduzir, com clareza constante e sem esforço aparente, o que as pessoas pensam, seus sentimentos, suas intenções, seus atos-falhos, suas presunções de grandeza, seus pontos-cegos mentais. 
 
Nem falo de recursos modernistas e sofisticados como o “fluxo de consciência” (stream of consciouness) ou o monólogo interior. Estas são conquistas da literatura de cem anos atrás, já devidamente assimiladas (e simplificadas) pela literatura “mainstream”, comercial, que qualquer leitor lê e interpreta sem esforço excessivo. 
 
É a simples reprodução do que se passa na mente do personagem, inclusive raciocínios complexos e factuais (as deduções de um detetive, p. ex.) que nenhum ator ou atriz, por melhor que seja, pode reconstituir com a fisionomia ou a linguagem corporal. 
 
Existe sempre o recurso da voz em “off”: vemos o ator pensativo, e na trilha sonora escutamos sua voz, bem baixinho, dizendo o que ele pensa. Mas (como dizia um roteirista amigo meu) “a voz em off é o derradeiro recurso dos incompetentes”. 
 
O filme Conclave nos dá a narrativa quase completa. Um enredo cheio de informações curiosas sobre a Igreja Católica, sobre a política contemporânea, etc.; o que não consegue nos dar é a trajetória tortuosa da mente do Cardeal Lawrence/Lomeli, por mais que o ótimo Ralph Fiennes defenda o papel com bravura.  
 
O livro (lá vou eu repetir um chavão de sempre) é mais completo que o filme, é mais profundo, é mais detalhado, mais esclarecedor, e nos permite ver cada personagem “por dentro”, de uma maneira que nem o melhor câmera e o melhor ator conseguem nos transmitir. (Conseguem outras coisas que a literatura não alcança, é claro—as coisas que são do domínio do cinema propriamente dito, o “específico fílmico”.) 
 
O livro Conclave me deixou com vontade de ver o filme. Se eu tivesse visto primeiro o filme, não sei se teria vontade de ler o livro, porque o filme não dá tantas pistas de todos os subtextos de complexidade que há na prosa original. 
 
Comparar livros e filmes é um jogo onde nunca se ganha. Como dizia o heroizinho de Machado de Assis: “Ganha-se a vida, perde-se a batalha!”. Ou o contrário, quem sabe?  
 
[ CONCLAVE cabeça ]
 
 
 

 




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