O cinema tem seus clássicos da série A e seus clássicos
da série B. Perdão pela terminologia futebolística, mas invoco em minha defesa
o fato indiscutível de que a expressão “filme B” precede em muito a divisão do Campeonato
Brasileiro de Futebol em séries.
O filme B é, na origem, “the B-movie”; é jargão cinemeiro norte-americano, que traduzimos
de olhos fechados. O que é o filme B? Vou
me socorrer de Charles Flynn e Todd McCarthy,
autores do utilíssimo Kings of the Bs
– Working Within the Hollywood System (E. P. Dutton, 1975).
O filme B não é necessariamente um filme barato (baixo
orçamento), um filme mal feito, um filme meramente comercial, um filme que
obedece cegamente a uma fórmula eficaz, etc. Ele decorre (dizem CF e TMC) do
fato de que o mercado exibidor dos EUA, na década de 1930 descobriu uma pequena
mina de ouro – a programação dupla (“double
bill”), com dois filmes pelo preço de um.
Segundo eles, no final de 1935 cerca de 85% dos cinemas
usavam este expediente. Um filme A, com elenco mais famoso, produção mais cara,
ambições mais fortes, e um filme B, que servia de contrapeso.
Mais ou menos como no mercado fonográfico – onde os
discos saíam (primeiro os 78 rotações, e depois os “compactos”) com duas
canções: a música-de-trabalho era o lado A, e no lado B vinha um contrapeso.
Que muitas vezes surpreendia e virava o grande sucesso. Aconteceu muito.
No cinema, a programação dupla deu origem a uma faixa de
produção/comercialização peculiar. Dizem os autores:
Em contraste com o filme A da programação, que trabalhava com
percentagens, o filme secundário recebia um preço fixo pelo aluguel. Como esse
preço não era baseado nem em bilheteria nem em popularidade, o produtor podia
saber com razoável precisão quanto iria arrecadar com cada filme B que
produzisse. Não tinha perspectiva de ganhos espetaculares, nem de um sucesso
inesperado, e esta é a razão dos grandes estúdios não terem interesse em agir
nesta faixa. Por outro lado, o risco de prejuízo era mínimo. Um estúdio menor
podia produzir um filme B por, digamos 75 ou 80.000 dólares e embolsar um lucro
de 10 ou 15.000. (pág. 17, trad. BT)
O filme B tornou-se o território de diretores capazes de
fazer algo bom dentro dos limites de um pequeno orçamento, e sem a obrigação de
fazer sucesso, pois era um filme que pegava carona na popularidade ou no
marketing do “filme A” a que estava acoplado. Bastava ter esperteza e jogo
rápido.
Nessa “raia”, meus diretores preferidos são Roger Corman
e William Castle.
O peso da obrigação-de-fazer-sucesso ficava todo em cima
do filme A. (A obrigação de fazer sucesso é um drama. Agora mesmo estamos vendo
um filme caríssimo, Coringa: Delírio a Dois,
correr o risco de um triste naufrágio, porque gastou 200 milhões e parece que
não vai arrecadar nem perto disto.)
Em todo caso, o sentido de “filme B” acabou se ampliando
em relação a essa definição original, e absorvendo filmes feitos sem grandes
ambições além de recuperar os custos, faturar um lucro que
não-seja-de-se-jogar-fora e alavancar o próximo projeto.
Há um aspecto que às vezes fica em segundo plano, no
filme B típico, e que eu chamo de “cine gambiarra”. É o reaproveitamento, em
todos os sentidos possíveis, de material alheio ou próprio, para agilizar e
baratear o filme que está sendo feito.
O YouTube tem versão (com legendas em português) de um
clássico-B do filme de horror, um filme muito citado por quem é do ramo e que
por motivos variados só vim a assistir agora. E é um “Cine Gambiarra” para
ninguém botar defeito.
Horror Express (1972)
é uma co-produção Inglaterra/Itália, dirigida por Eugenio Martin, com um elenco
onde figuram dois “monstros sagrados” (termo mais do que apropriado) do filme
de terror – Christopher Lee e Peter Cushing.
É o que a gente chamava antigamente “filme de trem” –
aquele que acontece por inteiro (ou quase) no interior de um trem em movimento,
como Assassinato no Expresso do Oriente
(1974) de Sidney Lumet, O Trem (1964)
de John Frankenheimer, O Expresso de
Chicago (1976) de Arthur Hiller, A
Dama Oculta (1938) de Alfred Hitchcock e por aí vai.
É uma trama de horror cuja tática de gambiarra já começa
pelo roteiro. A ficha técnica não dá a menor pista disso, mas a idéia central é
a mesma do conto de John W. Campbell Jr., “Who Goes There?” (1938): um
alienígena estava vivo e congelado há milênios numa geleira até ser descoberto
por cientista; ele volta à vida e passa a invadir os corpos de pessoas (ou a
modificar o próprio corpo para se assemelhar a elas), tentando descobrir uma
maneira de voltar ao seu mundo de origem. Vai matando pessoas, de uma em uma, até
ser destruído.
O conto tinha sido filmado por Chris Nyby como The Thing From Outer Space (1961) e
depois voltaria através de John Carpenter com The Thing (1982).
No filme de Eugenio Martin, Christopher Lee é um
antropólogo inglês que tenta levar um espécimen congelado para Londres (sem
saber que nele se oculta o alienígena), e Peter Cushing um cientista rival que
viaja no mesmo trem e fica xeretando o colega.
Como surgiu o filme? O produtor Bernard Gordon conseguiu
acesso a um trem que havia sido usado no filme Nicholas e Alexandra (1971) de Franklin Schaffner, e esse trem foi
usado tanto em Horror Express quanto
no outro filme que ele produziu para Eugenio Martin, Pancho Villa (1972).
O produtor tinha sob contrato o ator Telly Savallas e
conseguiu encaixá-lo num papel qualquer, onde ele improvisou a maioria de suas
falas, por um salário muito menor do que o que recebia na época.
O grande trunfo do filme, contudo, é conseguir reunir
numa produção precária os dois grandes atores do terror cinematográfico. Que
eram amigos, e se divertiam trabalhando juntos. Inclusive quando o roteiro lhes
dá falas como na cena em que um inspetor vê os dois juntos e diz: “ – Um de
vocês pode ser o monstro!”, ao que Peter Cushing, ofendido retruca: “ –
Monstro?! Nós somos ingleses!”.
O filme tem uma narrativa bastante compacta e vibrante,
aproveitando bem o espaço apertado e ameaçador do trem. As trucagens são
precárias mas suportáveis. De maior interesse é quando o cientista examina os
olhos das vítimas do monstro e extrai dali as últimas imagens que a pessoa
guardava em seu “fluido ocular” – porque “a memória visual da criatura não está
no cérebro, mas no próprio olho”.
A cena inclui a imagem, em plano de detalhe, de uma
agulha de injeção perfurando o globo ocular de um cadáver. Imagem tão
inquietante quanto a do olho cortado por navalha em “Um Cão Andaluz” (1928) de
Luís Buñuel, ou das garras metálicas arreganhando os olhos de Alex em Laranja Mecânica (1971) de Stanley
Kubrick.
E ao examinarem o fluido ocular do primeiro fóssil
(encontrado na geleira), eles encontram “gravadas” imagens de um brontossauro,
de um pterodáctilo... E logo depois uma imagem da Terra, vista do espaço.
Uma das vantagens desses filmes de baixo orçamento é a
baixa expectativa. Eugenio Martin não é um roteirista/diretor dos mais
talentosos, mas sente-se que ele está fazendo o filme do jeito que lhe apraz.
Num filme com orçamento dez vezes maior, haveria dez fiscais-de-roteiro
examinando cenas assim e questionando se é científicamente possível, se “a
narrativa pede”, se avança a ação, se aprofunda o personagem...
Filmes de grande orçamento têm sempre uma certa
quantidade de pessoas pagas pelo estúdio porque são primas ou cunhadas ou
marido de alguém. Essas pessoas em geral são inofensivas, embolsam seu
contracheque e deixam os outros trabalharem em paz, mas alguns querem mostrar
serviço, ou acreditam que sabem da missa melhor do que o padre.
Escrevi aqui anos atrás sobre “o filme B de intelectual”.
https://mundofantasmo.blogspot.com/2010/07/2255-filme-b-de-intelectual-3052010.html
É o filme de baixo orçamento mas de altas ambições
artísticas ou ideológicas. Muitos diretores se fizeram atuando nessa faixa:
Luís Buñuel e Jean-Luc Godard são dois exemplos que acompanhei a vida inteira.
Mas não são somente os filmes B intelectualizados que têm virtudes. O
filme-entretenimento, com pouco dinheiro, pode ter um rendimento muito bom quando
quem o faz é uma equipe que se entende, se respeita e tenta fazer o melhor
filme possível dentro das suas limitações – sem se preocupar com os críticos.
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