sexta-feira, 11 de outubro de 2024

5111) João do Rio, o dândi carioca (11.10.2024)



Uma feliz coincidência entre dois fatos editoriais está trazendo à memória do leitor brasileiro (este amnésico contumaz) o nome e a obra de João do Rio, uma das figuras literárias mais curiosas de sua época. 

O primeiro fato é a publicação da coletânea Pavor Dentro da Noite (Editora Bandeirola~, SP), uma seleção de contos sombrios e mórbidos do autor, dentro da série “Clássicos Vintage” da editora, em sua linha de mistério. A pequena edição em capa dura traz prefácio de Hedjan C. S., posfácio de Julio França e fotos de Marc Ferrez. 

O segundo, last but not least, é a escolha do cronista como homenageado da Flip, a Festa Literária de Paraty. É um tipo de celebração sempre bem vindo, pois acarreta, se não uma corrida generalizada aos balcões de livraria, pelo menos um certo aquecimento nas discussões, análises e avaliações da obra do autor. 

João do Rio foi um contista-cronista típico dessa forma híbrida da prosa brasileira: o texto curto que ora é narrativo ora é reflexivo, oscila entre a história-onde-acontece-alguma-coisa e a elucubração íntima do narrador. O conto narra, a crônica comenta: não é de admirar que sejam muito raros os textos em que as duas tendências não aparecem misturadas. 

Seu nome era (há versões divergentes) João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto, mas ele o reduziu ao thumbnail Paulo Barreto (hoje uma simpática rua de Botafogo, transversal da Voluntários da Pátria). João do Rio, o nome literário que criou para si mesmo, era mais popular, mais poético, mais verdadeiro. 

Digressão: Há em muitos artistas um movimento instintivo de atrelar ao seu nome o nome de sua cidade ou região. Alguns veem nisso uma forma de patriotada ou de bairrismo; penso, antes, que esse nome artístico – porque não é o mero nome cartorial, é uma identidade auto-construída – procura reconhecer o que há de tradição em toda novidade, e o que há de coletivo em todo indivíduo criador. 

Daí termos Robertinho do Recife, Fafá de Belém, Mississippi John Hurt, Martinho da Vila, João Pernambuco, Memphis Slim, Salgado Maranhão, Biliu de Campina...

João do Rio foi um contemporâneo de Lima Barreto; enfrentou problemas parecidos (como o racismo) mas acabou se saindo melhor do que o autor de Isaías Caminha – romance no qual, ao que se diz, Lima o retratou com outro nome. Praticou um jornalismo pioneiro indo à rua, indo aos morros, indo aos becos, anotando as falas do povo, produzindo inclusive um trabalho fundador sobre a religiosidade popular, As Religiões no Rio (1904). 



Pavor Dentro da Noite é uma filtragem de seus contos, feita pela editora Bandeirola, selecionando – para uma coleção voltada para histórias sombrias, de mistério, de terror – algumas das suas narrativas mais próximas do insólito, do mórbido, a maioria das quais extraídas do volume Dentro da Noite  (1910). 

 

E nestas narrativas emerge o João do Rio dândi, afetado, sibarita (como se dizia na época), estroina (como se dizia na época). O jornalista que não ia apenas aos morros ou aos terreiros de Umbanda, mas frequentava o café society, os restaurantes chics, as casas de chá, os salões elegantes, as mansões aristocráticas. 

Nesses momentos, era o jornalista com peso na pena. Era bem tratado, paparicado, por mais que fosse “gordo, amulatado e homossexual”, conforme o teria retratado o Barão do Rio Branco. Não importa – imprensa é imprensa, poder é poder.  João do Rio, apesar de escarnecido e insultado, sempre bateu de frente com os outros poderes da época, sem sair de perto da sua sombra. Entrou para a Academia Brasileira de Letras aos 28 anos, morreu de enfarte aos 39, e seu enterro no cemitério de São João Batista foi seguido por 100 mil pessoas, em 1921.  




Os narradores de seus contos têm sempre algo de autobiográfico, e refletem a vivência “Dr. Jekyll e Mr. Hyde” do autor, que no início da noite podia estar jantando faisão com diplomatas e banqueiros, e horas mais tarde estar bêbado e disponível num frege das “ruas de má fama” (como se dizia na época). 

 

Perversões sexuais (“Dentro da Noite”, “A Mais Estranha Moléstia”), drogas (“Histórias de gente alegre”), cleptomania (“Aventura de hotel”), ninfomania (“O carro da Semana Santa”), aparecem lado a lado, nestas narrativas curtas, com traições políticas (“O fim de Arsênio Godard”), epidemias (“A Peste”), jogatina (“Emoções”), e flertes com o sobrenatural (“O bebê de tarlatana rosa”, “Pavor”). 

 

João do Rio nos faz entrever um Rio de Janeiro plebeu e degenerado que passava apenas ao fundo do cenário (suposto, subentendido) nos livros de Coelho Neto, Humberto de Campos, e mesmo de Lima Barreto. De certa forma, ele é precursor da ficção (também semi-jornalística) de João Antonio (Leão de Chácara, etc.), a ficção da convivência nos botequins baratos, na zona do baixo meretrício.  




Nestes contos, o “narrador” onipresente mostra como as classes altas, os granfinos, os rapazes e moças da sociedade, frequentam esses lugares em busca de bebida, de ópio, de éter, de sexo anônimo, não importa se pago ou gratuito. Os extremos sociais se tocam, se frequentam, se esfregam e se desfrutam mutuamente. Sem meias palavras e sem máscaras. 

 

Não há quem não saia no Carnaval disposto ao excesso, disposto aos transportes da carne e às maiores extravagâncias. O desejo, quase doentio, é como incutido, infiltrado pelo ambiente. Tudo respira luxúria, tudo tem da ânsia e do espasmo, e nesses quatro dias paranóicos, de pulos, de guinchos, de confianças ilimitadas, tudo é possível. Não há quem se contente com uma... (...) Íamos juntos e fantasiadas as mulheres. Não havia o que temer e a gente conseguia realizar o maior desejo: acanalhar-se, enlamear-se bem. Naturalmente fomos e era uma desolação com pretas beiçudas e desdentadas esparramando belbutinas fedorentas pelo estrado da banda militar. Todo o pessoal de azeiteiros das ruelas lôbregas e essas estranhas figuras de larvas diabólicas, de demônios em frascos de álcool, que tem as perdidas de certas ruas, moças, mas com os traços como amassados e todas pálidas, pálidas feitas de pasta de mata-borrão e de papel de arroz.  

(“O bebê de tarlatana rosa”) 

 

Em “A mais estranha moléstia”, ele mostra um indivíduo de olfato ultra-sensível, que extrai prazer meramente do ato de sentir os cheiros mais variados, quase como o Grenouille de O Perfume, de Patrick Susskind. Todo o conto é uma exaltação ao olfato, chegando até os limites de sinestesia, da contaminação de um sentido por outro:

 

Ah! essa aflição que dá aos sentidos o cheiro de algumas flores, as violetas, cujas emanações são como sons de violino em noites de luar, as tuberosas. crispantes de cio, as rosas-chá que cheiram como carnes morenas, o resedá, a flor do resedá que o Fezensac cantou idiotamente num trocadilho e que entretanto guardam um frio e exasperante odor de gérmen fecundante, cheiro de marfim raspado... E, para notares a correspondência de cheiros idênticos nas coisas mais diversas, a flor que cheira a marfim, é também, cheiro resumo do cheiro inicial da vida, irmão odor do odor da semente criadora, estranhamente perdido entre as ervas... 

 

Nos contos aqui reunidos, João do Rio faz uma espécie de literatura que pode talvez ser chamada de “expressionista”, porque reproduz o mundo pressentido pela mente obcecada e distorcida de um personagem. O autor procura manter um certo distanciamento; ao contrário dos contos alucinatórios de Edgar Allan Poe, que são narrados pela própria vítima da alucinação ou da obsessão, João do Rio interpõe um narrador neutro entre o leitor e os fatos mórbidos que descreve. O narrador não é um indivíduo a quem sucedem coisas espantosas, é um ouvinte que atrai confidências espantosas. 

 

A literatura “Belle Époque” de João do Rio se prolongaria, após sua morte, em seguidores como Berilo Neves, ele também um contista-cronista especializado em salões de chá, recepções e jantares na alta sociedade – só que desta vez beneficiando-se das invenções da ficção científica da época. Os personagens de Berilo Neves pegam espaçonaves para tomar o chá das 5 na Lua, ou fazem sessões grupais de máquinas leitoras do pensamento (e, claro, reveladoras involuntárias de adultérios). No espaço entre João do Rio e Berilo Neves, a literatura transferiu-se por completo dos becos da Lapa para os salões de Botafogo. 

 










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