A crítica de cinema é uma atividade em extinção? Não, não
é, apesar de tudo o que tem acontecido. Principalmente (entre muitas, muitas
outras coisas) a resistível ascensão do “influenciador de internet”, a pessoa
que tem um canal de YouTube, um blog, um saite, seja lá o que for – e com essa
arma explica o mundo para um milhão de seguidores.
O medo é real, no entanto, e um artigo recente de Manuela
Lazic no The Guardian pergunta: “Quem
precisa de críticos de cinema, quando os estúdios têm como certo que os
influenciadores vão elogiar o filme?”. Eu diria que O Império dos Fãs é um título muito mais ameaçador do que O Ataque Dos Clones ou mesmo A Vingança dos Sith.
https://www.theguardian.com/film/2023/aug/01/what-are-film-critics-for-today
Não posso ser demasiado severo com os fãs
cinematográficos: fui um deles, e pelo que me dizem não existe o conceito de
“ex-fã”. Não há como negar, porém, que qualquer multidão de fãs tem um
comportamento ligeiramente insetóide, e há um mecanismo pavloviano conduzindo
essas multidões na direção da bilheteria e, depois, na direção dos teclados,
onde passarão a conduzir novas levas para a bilheteria – que, mais do que a
tela, é a razão de ser de tudo aquilo.
Não entra aqui, por enquanto, a questão dos filmes serem
bons ou ruins, até porque estes conceitos são construídos através do que
podemos chamar de “subjetividade coletiva” – grupos significativos de pessoas
que compartilham critérios e opiniões. Se um milhão de pessoas no mundo inteiro
diz que um filme de Fellini ou um filme de David Lynch é bom, isto significa
alguma coisa. Se dizem que o filme de [coloque
aqui o nome de algum diretor ruim de hoje em dia, estou desatualizado] é
bom, também não posso discutir. Como diz um meme famoso, “cultura não é só o
que você gosta”. Paciência.
A Internet e suas plataformas de vídeo têm canais onde os
chamados influenciadores falam diretamente para centenas de milhares de pessoas,
ou até milhões, seja ao vivo ou em gravação. Isto vai muitíssimo além, no
Brasil por exemplo, do que um crítico de cinema de jornal ou revista pode
alcançar. Em termos de formação de opinião, no atual desnível tecnológico, os
fãs andam de Ferrari e os críticos no fusquinha de sempre.
O poder dos críticos sempre foi proporcional ao poder dos
meios de comunicação. Nos anos 1980, no Rio de Janeiro, uma crítica negativa de
Maria Helena Dutra era capaz de tirar de cartaz um show que acabara de estrear
no Canecão. Bárbara Heliodora demolia uma peça de teatro, e a peça corria o
risco de não ter uma segunda temporada. Curiosamente, devastações desse tipo
são mais raras na literatura. Pouca gente apanhou tanto quanto Carlos Drummond e
Guimarães Rosa – mas se impuseram. Também tiveram críticos respeitados a seu
favor. Ou seja: havia peso nos dois pratos da balança.
Pode-se estender um pouquinho essa metáfora e dizer que o
problema agora não está na balança; digamos que esteja na fita métrica.
Críticos de peso continuam existindo, mas os critérios de sucesso ou fracasso
não são determinados por eles, e sim por uma floração de semi-críticos, que são
os influenciadores. Alguns certamente têm formação cultural semelhante à dos
críticos da imprensa. Outros são demasiado jovens, voluntariosos, opinativos na
base do “amei” ou “detestei”. Em parte foram formados pela própria imprensa,
quando esta começou a usar slogans redutores tipo Imperdível ou Fuja! para qualificar
os espetáculos.
(Pauline Kael)
A novaiorquina Pauline Kael, que escrevia na poderosa The New Yorker, já teve um enorme
peso-de-poder nas mãos, algo que um crítico brasileiro jamais imaginaria. Suas
opiniões nem sempre coincidem com as minhas, mas ela fala com clareza, com
paixão, com bons argumentos e com conhecimento de causa – mesmo quando destrói
filmes que eu admiro ou quando elogia banalidades. Eu leio os críticos, afinal,
não na expectativa de que concordem com a minha opinião, mas para que a
enriqueçam.
Às vezes a crítica dela vinha carregada de vitríolo, vinha
azedada por aquele complexo-de-sabe-tudo que os novaiorquinos têm (e não só
eles, mas cala-te boca). Pauline dizia receber cartas ameaçadoras dizendo em
quantos pedaços o missivista pretendia cortar seu corpo, e o que faria depois
com cada um deles. No filme What She
Said: The Art of Pauline Kael (Rob Garver, 2018), há um depoimento de David
Lean que chega a incomodar. Ele tinha sido convidado a um almoço do New York
Critics Circle, em 1970.
Existe uma coisa, não sei bem como chamá-la, digamos: um círculo de
críticos. Eles têm línguas afiadas. E eu fiquei ali por duas horas. E Pauline
Kael tem uma língua especialmente afiada. Eu só lembro de ter dito, no final:
“Acho que vocês só ficarão satisfeitos no dia em que eu fizer um filme
preto-e-branco em 16mm”. E Pauline Kael disse: “Oh, não, pode fazer colorido.” E
isto foi tudo. Teve um efeito muito sério sobre mim. Eu pensei: por que diabo
estou fazendo filmes? Eu não tenho que fazer isso. E deixei de fazer, por algum
tempo. Isso abala a confiança da gente, sabe, de um jeito terrível.
(David Lean)
Quem diz isso não é um jovem inseguro, é o homem que
dirigiu A Ponte do Rio Kwai, Doutor Jivago, Lawrence da Arábia e A Filha
de Ryan. Disse ao ser acuado por críticos que certamente não gostavam de
seu cinemão de tela larga, paisagens amplas, dramas pessoais misturados a
momentos épicos da História, com bela música orquestral. Bons filmes. (Eu
gosto.)
Hoje, um rapaz ou uma moça de 25 anos, que ouviu algum
galo cantar mas não sabe onde, pode fazer um estrago semelhante ao de Pauline.
Mesmo que não seja algo encomendado por inimigos pessoais do diretor ou por
estúdios rivais, mesmo que seja uma opinião sincera e sem maldade, pode
produzir um estrago pela simples questão dos grandes números.
Millôr Fernandes (que tinha língua tão ferina quanto a de
Pauline Kael) disse que ditadura é quando você manda em mim, e democracia é
quando eu mando em você. Dá para pensar que um bom crítico/influenciador é o
que concorda com meu gosto, e o mau é o que discorda. As opiniões em si teriam
um efeito apenas estimulante se não fosse o enorme poder que é conferido a
alguém, seja nas páginas de uma revista influente como The New Yorker seja num canal de YouTube com um milhão de assinantes.
Dizem que o poder corrompe, e se fosse só isto era bom. A
verdade é que o poder ilumina, ofusca, fortalece, inebria, ilude, reafirma, provoca,
atiça... Um crítico em posição de poder é uma pessoa montada num tigre. (Um
artista também.)
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