(ilustração: Davit Mirzoyan)
1
Hélcio Sussekind Nogueira, 30 anos, executivo júnior da
SemperLife, uma empresa de seguros de ascensão meteórica nos primeiros anos
desta década, mas não mais meteórica do que a do próprio Hélcio, conhecido
rapidamente na cúpula da empresa por sua inteligência viva, elétrica, sempre um
passo adiante de todos, o cara que pensava todas as hipóteses e alternativas em
meros segundos e extraía disso a decisão certa, o cara que ganhava batalhas
perdidas empregando um zás-trás de argumentos irrespondíveis, fazendo bambear
as certezas de administradores-sênior mais calejados. Nesse dia, Hélcio
preparou-se ao longo de uma noite insone de comprimidos, café e cigarros, fotografou
mentalmente cada uma das 142 páginas do relatório geral do qual (ele sabia
muito bem) cada vice-presidente na manhã seguinte só teria lido a parte que lhe
dizia respeito, preparou sua estratégia, dali mesmo da poltrona juncada de
papéis e notebooks abertos googlou duas ou três novidades recém-desabrochadas
no mercado, visando efeito surpresa; e às onze da manhã, banhado, barbeado, fresco
como uma madressilva, encarou o bureau
de autoridades que esperavam seu apanhado; “Vamos,” provocou todo canchudo o
Dr. Herthal, “mostre aí um dos seus raciocínios quânticos,” e não precisou
mais, ele deslindou em dezessete minutos de solilóquio implacável o gigantesco
blefe que preparara (porque na realidade contava mais com o que os colegas mais
velhos ignoravam do que com o que ele próprio eventualmente soubesse), amarrou
tudo em três minutos e oito ítens, desfechou seu veredito final diante da mesa
enorme e muda... e, triunfante, tirou um cigarro do maço e o acendeu. Pelo
filtro.
2
Harriet B. Weinberg, 41 anos, agente imobiliária na
Filadélfia (EUA), andava com dores na coluna, dormia com dificuldade, nos
momentos de bom-humor dizia que preferia ficar tetraplégica para nunca mais ter
que levantar da cama, que vestir um terninho escuro, empunhar uma pasta
estufada de contratos e planilhas e panfletos e plantas baixas e sair batendo
calçada de salto alto elogiando para casais desconfiados e avarentos as
supostas vantagens de adquirir algum daqueles chalés cambaios, um daqueles
apartamentos infiltrados de mofo e vazamentos, daquelas quitinetes asfixiantes
situadas a dois metros de um trem de subúrbio e seu trovão pontualíssimo; tanto
se queixou que a filha lhe indicou um massoterapeuta em cuja maca ela se estirou
cheia de expectativas, e o iraniano esfregou as mãos, garantiu-lhe que sairia
dali sentindo-se “como se tivesse apenas 45”, e quando ela lhe pediu que
tivesse cuidado com sua cervical, que lhe incomodava muito, ele garantiu que
iria começar justamente por ali o milagre, e depois de alguns passeios
exploratórios com polegares cruéis segurou-lhe a cabeça, aprumou-a num ângulo
igual ao da ilustração do livro e puxou-a com força na direção
norte-por-noroeste, produzindo um estalo fortíssimo que trouxe à porta a secretária e produziu uma exclamação sufocada de “oh my God” por parte do terapeuta, e uma dor
lancinante que percorreu Harriet de cima a baixo como a espada de fogo de um
anjo vingador, dor que se manteve latejante durante todo o tempo necessário
para a convocação e a chegada dos paramédicos, a transferência dela para a
padiola, para o elevador, para a ambulância, para o hospital e para a mesa de
cirurgia urgente-urgentíssima onde seu último pensamento antes de mergulhar no
torpor anestésico foi sobre as piadas irreverentes das quais agora se
arrependia diante de Deus e de sua misericórdia, que dizem infinita.
3
Jakob Oberstreiter, 48 anos, bombeiro hidráulico, decidiu
aceitar o convite para o natalino jantar-confraternização da firma onde
trabalhava, botou a melhor roupa, raspou as economias, pegou o trem rumo ao
clube na cidade vizinha onde o evento transcorreu com espumantes e girândolas,
muitas bandejas, muitas opções, solícitos garçons ansiosos para que ele
consumisse logo, e Jakob naquela de “é hoje só, amanhã não tem mais”, e poucas
horas depois ele já se sentia um passageiro de uma espaçonave que oscilava,
adernava para a direita, para a esquerda, chacoalhava e lhe fugia aos pés. Com
o auxílio da uma parede à esquerda e outra à direita ele foi avançando pelo
corredor que lhe indicaram, achou o logotipo tranquilizador, entrou no
banheiro, foi à privada, trancou-se por dentro, arriou as calças, sentou,
desmoronou ali todas as ruínas orgânicas que trazia dentro de si, como um
Louvre malsão que recebesse ordem de despejo. Ao dar-se por terminado, e antes mesmo de
apertar a descarga, limpou-se, ficou de pé, puxou as calças para cima, acertou
correr o fecho eclé, acertou afivelar o cinto, e quando num gesto maquinal
bateu a mão no bolso direito traseiro da calça para se certificar da presença
reconfortante da carteira, constatou que o bolso estava frouxo e vazio, e a
busca aleatória pelo chão do banheiro nada lhe revelou, mas erguendo-se de novo
em toda sua estatura, ele vislumbrou a carteira, que evidentemente caíra do
bolso onde estava, no exato momento em que a calça fora erguida de volta, e agora
boiava cegamente ali, dentro da privada, encharcada de tudo, ensopada de tudo,
embebida e bêbada de tudo que a vida tinha para lhe oferecer.
4
Rebeca Ubiratan da Silva, 31 anos, curso incompleto de
Direito, recém-casada, residente em Campos dos Goytacazes (RJ), comoveu-se ao
ouvir o marido, Lourival Carneiro da Silva, 36 anos, desempregado, descrever os
percalços por que passava sua tia por parte de mãe, Genecy Barreiros, 45 anos,
prendas do lar, enviuvada há meses após um horripilante acidente numa
engarrafadora de refrigerantes, e por força dessa comoção sugeriu ao marido que
durante o processo de despejo e descoberta de um novo lar a tia Gené passasse
um tempinho na casa deles, com o que o marido concordou meio a contragosto, mas
luto é luto, e a Tia Gené concordou também, só que de forma entusiástica, e
transferiu-se para lá com armas e bagagens, dando início a um torvelinho de
emoções que (confessou Rebeca depois a uma amiga muito próxima) “me pegou pelo
rabo, deu dez voltas no ar e me jogou no Japão”, porque mal se abancou no
quartinho-de-fora da casa onde viviam os dois pombinhos a Tia Gené mexeu no
cardápio, interferiu na feira semanal, explodiu o cronograma de um casal pacato
e provisoriamente sem filhos, instaurou novas despesas, valeu-se do conceito
abstrato de feng-shui para ressignificar a mobília, brigou com o sem-teto
inofensivo que dormia embaixo da árvore da esquina, arrumou uma encrenca com o
gerente do mercadinho lá na praça por causa de um cartão magnético inválido, encrespou-se
de rivalidades com a vizinha da esquerda, a evangélica Mirtes Alcoforado, 55
anos, a quem ela passou a provocar diariamente ligando em todo volume um
Spotify de funks pornô, “só pra contrariar, eu não gosto”, explicou ela feliz
aos anfitriões, e logo em seguida declarou guerra aos vizinhos da direita, o
casal Belarmino, cujos cãezinhos magros, orelhudos e irrequietos foram misteriosamente amanhecendo em rigidez cadavérica, um por um, enquanto os
Belarminos ensandeciam e a polícia coçava a cabeça, dizendo precisar de provas
materiais, coisa que não havia, havia apenas a imaterialíssima prova do sorriso
bem-dormido de Tia Gené, cuja janela dava para aquele lado, sendo que ela já
apontava suas baterias rumo ao vizinho da frente, o doutor Wellington, ao
descobrir em quem ele tinha votado, o que a levou a uma febre cívica de
panfletos diários enfiados por baixo das portas ou janelas, de santinhos
espargidos no gramado, de cumprimentos sarcásticos gritados da calçada oposta
todas as manhãs antes que o doutor por isso mesmo abdicasse de sua mangueirada
matinal na grama, situação esta que perdurou até que Rebeca meteu os pés e
disse CHEGA, e a Tia Gené num instante arrumou um correspondente em Angra dos
Reis disposto não somente a aturá-la como a ir buscar de van os seus pertences,
cercada pelos quais ela acenou em despedida e sumiu na esquina, e o bairro
inteiro escutou o suspiro de alívio do casal.
Um comentário:
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