segunda-feira, 25 de maio de 2020

4582) Janelas Indiscretas (25.5.2020)




(ilustração: Laurent Durieux / laurentdurieux.com)


Durante este período de quarentena coletiva muita gente descobriu que tem janelas, que tem vizinhos, que tem curiosidade malsã pela vida alheia.

Pior: que não lhe resta outro remédio senão ficar voyeurizando o dia a dia de quem surge naquelas janelas, naqueles jardins, naqueles terraços. Ficar brechando, como se diz em Campina Grande.

Alfred Hitchcock construiu o hino mais sofisticado ao voyeurismo com o filme Janela Indiscreta (“Rear Window”, 1954), em que James Stewart faz o fotógrafo novaiorquino L. B. Jeffries, que, por estar com a perna quebrada no gesso, fica imobilizado à janela, olhando o pátio dos fundos do seu prédio, que dá para os fundos dos prédios vizinhos.

É verão, o que leva todo mundo a erguer as persianas e escancarar as janelas – menos, é claro, o casalzinho de jovens recém-casados que passa o dia de persiana abaixada, e quando o rapaz se debruça ali para fumar um cigarrinho rápido é logo convocado de volta ao leito pela respectiva.

O pianista tentando compor uma música, sem conseguir... a dançarina gostosinha cercada de admiradores... o casal que deita na varanda para curtir um ventinho... a solteirona de coração solitário precisando de companhia...


Jeffries está prestando atenção nos vizinhos possivelmente pela primeira vez, porque é um daqueles fotógrafos internacionais que passam meses fora de casa, cobrindo insurreições populares no Zimbábue ou registrando safaris no Serengeti. Seis semanas com a perna no gesso o levam a descobrir, nos fundos do seu prédio, um mundo igualmente fascinante e perigoso.

Um casal que vive às turras... certa madrugada ouve-se um grito... pelo dia seguinte inteiro as persianas ficam abaixadas... a mulher não é mais vista... vê-se o marido embrulhando facão, serra... saindo de madrugada, embaixo de chuva torrencial, com uma mala metálica, voltando, saindo de novo... que coisas, ou que partes de coisas, ele está levando naquela mala?

O DVD que revi agora tem um Making Of mostrando como aquele gigantesco cenário foi todo construído de verdade, são varandas de verdade, salas de verdade. Para ter altura suficiente foi preciso rebaixar o chão – o nível do solo é o apartamento de Jeff, e o pátio embaixo foi construído no lugar onde havia um porão.




A história original de Cornell Woolrich é muito diferente do filme. Foi publicada em 1942 no livro After Dinner Story, onde o autor usou seu frequente pseudônimo de “William Irish”. Começa assim (trad. minha):

Eu não sabia o nome de nenhum deles. Nunca ouvi suas vozes. Nem sequer os conhecia de vista, propriamente, porque seus rostos eram pequenos demais para que eu reconhecesse suas feições àquela distância. Mas eu poderia ter construído uma tabela com o cronograma de suas idas e vindas, seus hábitos cotidianos, suas atividades. Eles eram os moradores das janelas dos fundos que me cercavam.

O conto, mesmo sendo de um dos meus autores preferidos, nem de longe é tão bom quanto o filme. Primeiro, ele se concentra no crime, e esses figurantes, no livro, somem depois da primeira página; foi o roteiro de John  Michael Hayes que deu personalidade, história própria e cognomes a cada um deles.

Em segundo lugar, o cara do conto não tem enfermeira nem namorada. Hitchcock trouxe o talento de Thelma Ritter (aquela típica coadjuvante hitchcockiana a quem cabe ser o olho mais lúcido de toda a trama, e ter as falas mais mordazes) e a presença mesmerizante de Grace Kelly, uma dessas mulheres que se disserem “venha cá” o cara vai.

No conto há um diarista, Sam, que prepara comida para Jeff e o substitui nas incursões externas que o filme transfere para Grace Kelly; e há o detetive, mais ou menos na mesma função em ambos.

E um detalhe: no conto, vemos Jeff o tempo inteiro sentado à janela, pedindo a Sam para ir ali, ir acolá, e não sabemos por que. Somente no último parágrafo, à guisa de “final surpresa”, ele revela que está com a perna no gesso. Essa surpresinha só serve para tornar a história implausível durante 99% de sua extensão -- o leitor se pergunta o tempo todo por que o cara não sai dali. Deve ter sido a primeira coisa que Hitchcock resolveu mudar, e revelar a perna-no-gesso desde o início.

Comentando para François Truffaut (em Le cinéma selon Hitchcock, 1966) a multitude de pequenos dramas revelado pelas janelas traseiras dos apartamentos, Hichcock diz:

Do outro lado daquele pátio há todo tipo de conduta humana, um pequeno catálogo de comportamentos. Era absolutamente necessário fazê-lo, senão o filme não teria interesse. O que se vê na parede do pátio é uma quantidade de pequenas histórias, é o espelho, como você disse, de um pequeno mundo.
(Cap. 11, trad. BT)

Essa “quantidade de pequenas histórias” me traz à mente uma outra obra que não tem nada a ver, e tem tudo, com o filme: o romance A Vida Modo de Usar (1987) de Georges Perec (trad. Ivo Barroso). Nele, Perec parte da visualização de um edifício de dez andares com dez apartamentos por andar, visto de frente e sem a parede que tapa a visão desse observador externo.


A visão sugerida por Perec se assemelha a um tabuleiro de xadrez posto em pé, com 10 x 10 casas. Cada casa é um apartamento, visto do outro lado da rua (e sem parede atrapalhando). E o trabalho que o autor se propõe (seguindo regras complicadas demais para comentar aqui) é contar a história do que acontece nesse cem apartamentos – pois ele não é um mero observador (como o de Janela Indiscreta): é o Autor Onisciente, ele conhece aquele povo todo, sabe a história de todas as suas familias, suas aventuras e desventuras, sabe o que pensam, o que guardam em cada gaveta.



Perec não parece ser grande fã de Hitchcock. No romance, há uma menção muito en passant ao diretor no capítulo LXXV, e é ao filme Os Pássaros. Não há menções a Hitchcock no Cahiers des Charges de la Vie Mode d’Emploi (Paris : Zulma, 1993); e na biografia de Perec por David Bellos aparece apenas uma menção rápida, meramente biográfica, do dia em que Perec foi com uma namorada assistir Intriga Internacional (na França, La Mourt aux trousses).

Na adolescência (segundo Bellos), quando morava com seus tios em Blévy, Perec era leitor assíduo da edição francesa do Alfred Hitchcock’s Mystery Magazine e do Ellery Queen’s Mystery Magazine, além das versões de revistas de ficção científica como Galaxy e The Magazine of Fantasy and Science Fiction.

O autor francês cita algumas imagens que o inspiraram no seu romance, mas não o vi falando de Hitchcock. Ele cita um desenho do mestre Saul Steinberg:


Cita também a tradição das “casas de bonecas” dos artesãos da Europa, obras variadíssimas que se encontram em muitos museus:



Em todo caso, para mim existe uma afinidade total de espírito entre Janela Indiscreta e A Vida Modo de Usar: um cenário visto de longe mas visto em sua totalidade, e o entrecruzamento dos dramas daquelas pessoas que vivem lado a lado, que se conhecem, que se ignoram, que se relacionam, que se esbarram ao acaso, e o fato de que provavelmente cada uma delas se julga no centro de uma tela de cinema que é só sua.









3 comentários:

Paulo Rafael disse...

Massa! E dá vontade de rever o filme mais uma vez e ler o livro de Perec.

RODRIGO AMORIM disse...

Muito instigante mesmo! Taí,vou seguir o roteiro: conto, filme e livro. Obrigado por ajudar a tornar a quarentena mais criativa.

Unknown disse...

Taí: conto, filme e livro + essa frase: o fato de que provavelmente cada uma delas se julga no centro de uma tela de cinema que é só sua.