Assim como tem gente que muda o tom de voz quando vai
falar com alguém mais novo (coisa que os “alguéns mais novos” em geral
detestam, porque veem como sinal de falsidade), muitos escritores mudam o tom
da escrita quando trabalham num livro dirigido a crianças, ou a esse leitor que
modernamente vem sendo classificado como “jovem adulto” (“young adult”, na
língua da matriz).
Esse tom paternalista na escrita pode se manifestar de
várias maneiras, em duas direções básicas.
Na primeira, o autor sobe num pedestal e fala de cima
para baixo com o leitor, como se quisesse reafirmar sua autoridade e sua
hierarquia de mais velho: “Olha aqui, presta atenção, vou te explicar tudo...”
Na segunda, o autor resolve falar de igual para igual com
o hipotético leitor-jovem, imitando o que ele considera serem os trejeitos
verbais e mentais do seu público – mas o máximo que consegue é parecer um
sujeito de 50 anos trajando bermudão e boné virado pra trás.
Vai daí, resolvi enumerar alguns exemplos.
O PATERNALISMO CONSTRANGEDOR
Se o seu leitor é jovem, não importa de que idade (suponho
sempre um leitor já capaz de sentar sozinho com um texto e decifrá-lo em
silêncio, sem ajuda) evite tratá-lo como se ele fosse meio burrinho. Não
escreva algo como: “Naquela noite, os
nossos heróis tiveram que dormir ao ar livre, embaixo da intempérie. Palavrinha
difícil essa, não? Intempérie quer dizer tempo ruim, chuvoso.”
Esses comentários didáticos, piscando o olho para o público,
têm a intenção de aumentar a cumplicidade e a proximidade entre o Autor e o
Leitor, mas pra mim têm o efeito contrário. Acabam fazendo o Leitor achar que está
sendo considerado burrinho, que não sabe o significado de uma palavra, e que o
Autor é forçado a interromper a narrativa para passar a mão na cabecinha dele
diante de toda a turma, como fazem alguns professores, e dizer: “Ora, ora, garotos, não riam do Fulaninho.
Ele não sabia a palavra, mas agora entendeu, e não vai mais esquecer, não é,
Fulaninho?”
Agora me diga qual é o leitor que gosta disso.
DESCRIÇÃO DE EMOÇÕES
Como o Autor adulto imagina que os jovens não percebem
sutilezas emocionais, ele acha que a emoção deve ser descrita de forma
caricatural. E a toda hora fica usando expressões como “com os olhos fuzilando
de ódio”, “espumando de raiva”, “com o rosto contorcido de fúria”.
A descrição de emoções
passa por vários estágios. O primeiro estágio é o da descrição abstrata:
“Ao ouvir isso, João ficou furioso”.
É uma mera informação, sem nenhum indício concreto. Depois o escritor aprende
que é melhor dar alguma pista; risca a frase anterior e escreve: “Ao ouvir isto, João teve um sobressalto,
ficou com o rosto vermelho, ofegante, soltou um palavrão e deu um chute na
cadeira mais próxima.” Esta é uma
maneira concreta (mesmo que rudimentar) de dizer que o cara “ficou furioso” sem
recorrer ao adjetivo.
O problema é que todas essas descrições de segundo nível acabam
se transformando em clichê. Há até mesmo autores que brincam o tempo todo com
os próprios clichês, como Nelson Rodrigues, que vivia repetindo: “com o olho rútilo e o lábio trêmulo”.
Como, então, descrever as emoções dos personagens sem
recorrer aos meros adjetivos, e aos clichês descritivos? Não sei. Escrever é descobrir essas coisas.
DIÁLOGOS CARICATURAIS
Brigas em que as pessoas se insultam enquanto trocam
socos! Isso é um defeito mais frequente dos quadrinhos do que nos livros, mas
está presente nos dois.
Das brigas que já presenciei ao vivo, me ficou uma
lembrança sonora de grunhidos, arquejos, um certo rugido de fundo de garganta, um
ou outro palavrão truncado, mas diálogo mesmo teve muito pouco.
Quando você está engalfinhado com alguém, numa briga pra
valer, não fica dizendo (como nos quadrinhos), “você agora vai ver uma coisa, seu verme maldito”, “não pense que tenho medo de você, grandão”
ou o clássico “tome isto, isto e mais
isto!”. E por incrível que pareça eu vejo brigas narradas assim até em
livros para adultos.
Sou especialista em brigas? Nem de longe, nunca briguei
com ninguém. Mas já vi muita briga a poucos metros de distância, e estou
falando em briga séria, entre adultos doidos para arrebentar um ao outro de
verdade, e tenho boa memória. Só quem briga pronunciando frases de efeito é o
Batman.
LINGUAGEM AFETIVA ABESTADA
Usar diminutivos o tempo inteiro. Não sei se é
preconceito, mas eu vejo muito isso em livros infantis com personagens
femininas. A garota não tem um cachorro, tem um cachorrinho; ela não está lendo
um livro, está lendo um livrinho; ao se recolher ela não vai dormir em sua
cama, mas em sua caminha. Esse cacoete de linguagem afetiva fica irritante bem
depressa.
E não é porque eu sou homem e velho; quem eu vejo se
queixando disso são garotas que leem.
DECISÕES MORAIS
Os adultos pensam que vivem num mundo psicologicamente
complexo e profundo, e que os jovens vivem num mundo psicologicamente simples e
raso. Eu diria que frequentemente é o contrário. Adultos vivem num mundo onde,
bem ou mal, já aprenderam a se comportar; os jovens estão aprendendo às custas
de tentativas e erros, e aprendendo em
público, à vista de todo mundo.
Cory Doctorow (revista Locus, julho de 2008) afirma:
Escrever para leitores jovens é algo entusiasmante. Um autor de livros
para “jovens adultos” me disse: “A adolescência é uma série de decisões corajosas
e irreversíveis.”
Num dia, você é alguém que nunca disse uma mentira com consequências
graves; no dia seguinte, você acabou de fazê-lo, e nunca mais vai poder voltar
atrás. Num dia, você é alguém que nunca teve uma atitude nobre para ajudar um
amigo; no dia seguinte você o fez, e isso também não pode ser desfeito.
É de estranhar que os jovens experimentem suas amizades de maneira tão
intensa quanto companheiros de campo de batalha? É de estranhar que as partes
do nosso cérebro que governam a avaliação do perigo não estejam plenamente
desenvolvidas até a idade adulta? Quem correria riscos tão corajosamente, quem
enfrentaria tais dilemas existenciais, se tivesse um sistema de avaliação de
riscos maduro, e em pleno funcionamento?
Os jovens vivem num mundo que se caracteriza por uma dramaticidade
intensa. Isso é o sonho de um autor criador de enredos. Quando você percebe que
seus personagens vivem nesse estado de consequências cruciais, cada virada do
enredo adquire um impulso e uma importância que fazem o leitor não parar de
virar as páginas.
Escreveremos melhor, para os jovens, se compreendermos
que eles vivem a fase mais cheia de riscos da vida inteira, quando tudo que tem
importância crucial está acontecendo pela primeira vez. E talvez o que aconteça
nessa vez determine tudo o que virá depois.
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