sábado, 19 de agosto de 2017

4262) Antonio Cândido e a Literatura Nacional (19.8.2017)





(Antonio Cândido)


Sempre que a gente tenta defender algum tipo de arte do Brasil (literatura, cinema, ficção científica, seja o que for), em diferentes contextos, ouve alguns argumentos recorrentes, que se repetem como se fossem mantras, estribilhos, memes.

Um deles: “Olha, não adianta, foram os gringos que inventaram isso. Eles são muito melhores nisso do que a gente, não adianta querer concorrer com eles, basta comparar o produto deles com o nosso, chega dá vergonha”.

Outro: “Eu não sou nacionalista, eu não tenho obrigação de gostar de uma coisa só porque ela é brasileira. Meu interesse é a grande arte, o melhor produto. A meritocracia artística. Não vou gostar de uma coisa ruim só porque é brasileira.”

Muita da energia mental da minha vida foi consumida em torno dessas duas frases, que aliás são minhas, porque durante muito tempo fui eu que as pronunciei (e de vez em quando ainda o faço), fui que eu defendi essas posições, coberto, se não de razão, pelo menos de sinceridade.

Passemos adiante. No meu tempo de cineclubista, Paulo Emílio Salles Gomes era um professor de cinema da USP, famoso por ter estudado cinema na França, onde escreveu um livro sobre Jean Vigo, o cineasta de L’Atalante. De volta ao Brasil, tornou-se um defensor de cineastas brasileiros que aos nossos olhos não amarravam as chuteiras de Jean Vigo. E fez sobre um deles um livro magnífico: Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte.



Era muito citada naquela época (mal citada, aliás), nos debates, uma frase de Paulo Emílio: “O pior filme brasileiro é melhor do que qualquer filme estrangeiro”. Essa frase me enchia de brios e de perplexidade. Como assim – a obra de Mazzaropi era melhor do que a de Antonioni?!

Muito se discutiu sobre essa frase; aqui (https://www.brasildefato.com.br/node/10496/) está o link para um artigo da infatigável Rô, Maria do Rosário Caetano, em que ela faz um balanço dessa lenda cineclubística. Mas pela parte que me toca o mundo mudou quando algum informante providencial me alertou que não era isso que Paulo Emílio tinha dito. Ele dissera, na verdade: “o pior filme brasileiro diz mais de nós mesmos que o melhor filme estrangeiro”.

Não se tratava de qualidade estética, e sim de revelação de uma identidade.

Se eu sou um mero consumidor, um cara que quer puxar a carteira e escolher o melhor produto, posso exigir Antonioni. Mas se eu sou um criador e preciso entender o sistema onde minha obra vai se instalar depois de pronta, preciso pensar um pouco sobre Mazzaropi.

Não é que Antonioni me seja alienígena e inacessível. É que meu DNA psíquico, para o bem e para o mal,  tem mais de Mazzaropi do que do cineasta de O Eclipse.

Não custava nada a Paulo Emílio, como estudioso do cinema, ter pulado de Jean Vigo para Jean Renoir, ou até para Alain Resnais, não é mesmo? Mas não, ele pulou para Humberto Mauro e todo um exército de paraíbas (somos todos paraíbas, aos olhos europeus) que queriam fazer cinema aqui nesta terra de sobrados e mocambos.


(Paulo Emílio Salles Gomes)

No artigo de Maria do Rosário, que vai muito mais fundo nesta questão, ela transcreve uma glosa da famosa frase, que Paulo Emílio teria pronunciado numa entrevista à revista Cinegrafia (junho de 1974), nestes termos:

“Nós tentamos seguir de perto toda a produção brasileira atual, sem exceção. (…) Isso é uma tarefa laboriosa, difícil, frequentemente ingrata, mas culturalmente muito satisfatória. A gente encontra tanto de nós num mau filme, ele pode ser revelador de tanta coisa da nossa problemática, da nossa cultura, do nosso subdesenvolvimento, da nossa boçalidade (…) Em última análise, é muito mais estimulante para o espírito e para a cultura cuidar dessas coisas ruins do que ficar consumindo no maior conforto intelectual e na maior satisfação estética os produtos estrangeiros”.

Nessa formulação a idéia pode parecer até meio injusta, como se o resultado final de tanto estudo fosse somente o conhecimento da nossa boçalidade. Mas descobrimos virtudes também. Descobrimos talentos nossos que não somente os gringos parecem não ter, como eles próprios admiram com sinceridade, quando tomam conhecimento do que fazemos.

O brasileiro é um bipolar, que vive saltando do ufanismo de Afonso Celso para o complexo de viralata diagnosticado por Nelson Rodrigues.

Uma das direções em que se pode ir para evitar esse desespero esquizoide é a direção seguida por Paulo Emílio. Conhecer o que o Brasil faz – não para amá-lo incondicionalmente por ser “a Pátria”, mas para entender esta imensa confusão de país que somos. Entender o Brasil (= produzir hipóteses plausíveis sobre o Brasil) não deve ser mais difícil do que entender Deus (como querem os teólogos) ou o Universo (como querem os astrofísicos).

E nos faria um certo bem ter a humildade intelectual não só de Paulo Emílio mas de seu contemporâneo da USP, Antonio Cândido, o crítico literário falecido pouco tempo atrás. Ele dizia de nossa literatura:

“Comparada às grandes, a nossa literatura é pobre e fraca. Mas é ela, não há outra, que nos exprime. Se não for amada, não revelará a sua mensagem; e se não a amarmos, ninguém o fará por nós. Se não lermos as obras que a compõem, ninguém as tomará do esquecimento, descaso ou incompreensão. Ninguém, além de nós, poderá dar vida a essas tentativas muitas vezes débeis, outras vezes fortes, sempre tocantes, em que os homens do passado, no fundo de uma terra inculta, em meio a uma aclimatação penosa da cultura europeia, procuravam externalizar para nós, seus descendentes, os sentimentos que experimentavam, as observações que faziam - dos quais se formaram os nossos”.



Não fazemos isto por simpatia paternal e piedosa para com um bando de coitadinhos que escreviam mal. A experiência humana deles não era inferior à nossa, por mais que nos julguemos civilizatórios e sofisticados porque compramos engenhocas eletrônicas em doze vezes no cartão. Queiramos ou não, o país se parece mais com esses escritores dos anos 1800 do que conosco.

Vi tempos atrás no Facebook uma citação de Gustavo Nagel a respeito de um comentário feito por um autor que não conheço, Jean Bottéro, sobre o “Canto de Débora” (poema do capítulo 5 de “Juízes”) em celebração a uma vitória dos invasores hebreus sobre os locais, e transcrevo:

"Tratava-se apenas de um punhado de homens, microscópicos, perdidos num momento qualquer da história, que lutavam sob a chuva por um lote de terra, sem que a ridícula agitação que faziam tivesse, na verdade, contribuição alguma para o homem e seu progresso, e que permaneceriam, eles e sua agitação, escondidos e esquecidos, como infinitos outros, sob a poeira do tempo, se esse canto imortal não os alçasse a um plano cósmico, universal e eterno, e os transformasse, aos olhos dos leitores, num momento crucial da história do mundo."

Essa experiência humana, anônima e coletiva, geradora de produtos literários, não difere muito da experiência sofisticada de um romancista novaiorquino ganhador do Prêmio Pulitzer ou de um francês ganhador do Nobel. Eles se acham talvez superiores ao que escrevem, mas não o são, porque ninguém o é. Se o que escrevem tem algum valor, ficará. E quem atribui esse valor não são eles, são os leitores, aos quais muitas vezes eles se julgam superiores.


(G. K. Chesterton)

E para encerrar chamo ao banco de testemunhas o volumoso, exuberante e desbocado G. K. Chesterton, que celebrava o Império Britânico com toda a ironia de quem sabia muito bem de que barro ambos eram feitos. Diz ele, num texto de 1908:

“Minha aceitação do universo não é otimismo; parece-se mais com o patriotismo.  É uma questão básica de lealdade.  O mundo não é uma pensão barata em Brighton, que devamos abandonar, de tão miserável que é.  É a fortaleza da nossa família, com a bandeira tremulando no torreão, e quanto mais miserável for, menos devemos abandoná-la.  A questão não é saber se este mundo é triste demais para ser amado ou alegre demais para não sê-lo: a questão é que quando amamos uma coisa, se ela é alegre é uma razão para que a amemos, e se é triste é razão para amá-la mais ainda.  (...) Foi assim que as cidades se tornaram grandes.  Se remontarmos às raízes mais obscuras de nossa civilização vamos encontrá-las enlaçadas em torno de alguma pedra sagrada ou mergulhadas num poço igualmente sagrado.  As pessoas primeiro prestam tributo a um lugar, e depois conquistam glórias em seu nome.  Os homens do passado não amaram Roma porque ela era grande.  Ela tornou-se grande porque eles a amaram.”
(G. K. Chesterton, Orthodoxy, pags. 66-67)








2 comentários:

Anônimo disse...

E como fico eu, aspirante a escritor, morando no Brasil desde criança mas não tendo nascido no Brasil, não tendo formado minha mente nem estabelecido minha memória afetiva mais profunda nestas bandas? Como fico eu, para quem o sotaque brasileiro ainda tem um quê de estrangeiro, ainda que eu consiga imitá-lo muito bem, sobretudo na Literatura? Como fico eu, que sorria de desprezo quando meu pai, ainda mais estrangeiro do que eu, recitava comovido poemas medievais no seu idioma natal, e só anos depois percebi que idiota eu era, rindo das raízes dele por não ter nenhuma? Como fico eu, fazendo perguntas retóricas que não podem ter resposta, mas sabendo que sou um frankenstein cultural e linguístico, com pedaços costurados de meio mundo que nem sempre encaixam e às vezes até sangram, estouram as costuras e ameaçam se desmemebrar?

Anônimo disse...

Siga em frente, enfrente!