quinta-feira, 13 de agosto de 2015

3890) O som e o sentido (12.8.2015)




Num dos livros de Alice, Lewis Carroll faz uma inversão de um provérbio inglês, que diz: “Take care of the pence, and the pounds will take care of themselves”. Refere-se à moeda inglesa (pence/pounds) e poderia entre nós ser adaptado como: “Cuide bem dos centavos, e os reais cuidarão de si mesmos”. 

Em Alice, Carroll faz um curioso paralelo entre dinheiro e linguagem, quando a Duquesa diz à menina: “Take care of the sense, and the sounds will take care of themselves”. Ou seja: “Cuide bem do sentido, e os sons cuidarão de si mesmos”.

Não me parece um conselho útil, mesmo sendo eu um fã do criador do Jabberwock. Minha visão da literatura é o contrário: cuide bem dos sons das palavras, porque o sentido delas cuidará de si mesmo. Muitos escritores (famosos, inclusive) escrevem sem música nas frases, sem sonoridade nas palavras, preocupados apenas com o “conteúdo”. 

É como se quisessem transmitir uma mensagem, e não ligassem se o papel é sujo, a caneta falhada, a caligrafia um ó e a ortografia pior ainda.

Sempre é possível encontrar um meio-termo conciliando som e sentido, até porque os dois têm a mesma importância. Escritores que vêm da área científica passaram a vida sendo treinados a ligar apenas para o sentido, a exprimir da maneira mais exata possível o que estão pensando; a desenvolver raciocínios verbais, argumentações, exemplos, generalizações, etc.  

Querem contar suas histórias com uma “prosa invisível” como dizia Isaac Asimov (ao qual eu responderia que prosa invisível é página em branco). Daí, os autores de origem acadêmica muitas vezes escrevem mal. Não porque sejam burros, mas porque ninguém lhes ensinou a se preocupar com o som das palavras ou o ritmo das frases.

O que define a experiência estética literária é o uso da palavra em sua totalidade, inclusive seu som, a melodia que faz um texto ressoar em nós mil vezes mais do que outro texto que – em tese – está dizendo a mesma coisa.

Existem palavras sem sentido: gurchizuma, rampitíolo, frugamba, esbutonar... É a coisa mais fácil do mundo; posso inventar uma de dez em dez segundos até o fim da vida. (Já cultivo isso no meu “Dicionário Aldebarã”, que não deve ter passado despercebido a todos.)  Mas não existe palavra sem som. 

Todas as palavras que conhecemos e usamos têm som, inclusive as aldebarânicas. Literatura, por definição (pois é o que a diferencia dos outros usos da linguagem) é uma arte onde a palavra é considerada em sua dimensão material, sonora, pois no tumulto de impressões, sensações e emoções em-estado-bruto que fervilha em nossa mente há bilhões de impulsos que são sentido puro, mas só se tornam palavras quando adquirem som.





[Nota: este artigo foi postado aqui no blog fora de ordem, por motivo de viagem, pressa, etc. No "Jornal da Paraíba", ele saiu no dia 12 de agosto, e "Romance policial", artigo 3891, no dia 13 de agosto.]



Um comentário:

Wandique disse...

O escritor sempre pode tomar partido do estritamente gramatical ou optar pela "linguagem falada" que possui um dinamismo mais acentuado que aquela prevista pelos gramáticos. O caminho do desenvolvimento da língua é sempre do que se fala para o que se escreve (o que é algo muito raro atualmente). É aí que entra o "som" algumas vezes mudando o sentido. Sou natural de Curitiba e a imigração polonesa influenciou muito no nosso sotaque (pelo menos até a minha geração), falamos muito próximo da maneira que se escreve, é lendária e expressão "leite quente" ao invés de "leiti quenti" como a maioria dos meus compatriotas falam. Quando viajo para o norte (meu norte começa em São Paulo) as pessoas ao ouvirem meu sotaque pensam que sou gaúcho, mas isso é um grande equívoco, pois os gaúcho falam quase cantando. Mas voltando ao "sentido" do post, certa vez fazendo turismo em Ouro Preto, um guia turístico, ao me ouvir conversando com minha esposa nos perguntou que língua estávamos falando ...