quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

3085) O scroll e o códice (17.1.2013)




“Mestre Além tinha setenta anos mas sabia ler desde os nove, quando começou a ajudar o padrasto a conferir as entradas e saídas em sua modesta tenda, da qual dependia o pão e o futuro de cada pessoa naquela casa. 

"Das faturas e recibos passou às Escrituras Sagradas e destas à literatura. Descobriu que ler era uma maneira rápida de acumular conhecimentos e depois, numa discussão, soterrar com eles a maioria dos adversários. Não era preciso que os conhecimentos tivessem alguma importância. O diálogo humano não era vencido pelo significado das palavras, mas pelo poder encantatório de uma voz, suas cadências e ressonâncias, seus longos floreios de frases dando uma volta sobre si mesmas e laçando um nó perfeito.

“Um livro era um rio, era um fluxo, era uma fita de papel gravado que daria a volta à noite em oitenta dias. Um scroll: dois rolos giratórios, um largando, o outro colhendo, e no relâmpago de cada instante essa fita ia sendo mostrada aos olhos e depois levada para sempre. Um texto era uma linha, um cordão, um cordel, um fio de letras sem fim.  Do alfa ao ômega sem uma sutura sequer.

“E então sucedeu o inesperado. 

"Começaram-se a fazer uns livros em formas de caixa, retangulares, e lá dentro uma aberração, um livro assassinamente fatiado. Como uma pilha de retalhos que um felino raivoso rasgou. 

"Ele segurava aquelas contrafações, erguia a tampa de madeira-com-couro-ou-com-veludo e era instruído a tomar nas pontas dos dedos um canto geométrico qualquer e erguê-lo, com um movimento sempre numa mesma direção. No início esse cacos, todos parecidos, revelavam-se como que empilhados com um mínimo de senso, pois, se o que se lia em algum deles se interrompia, por uma abençoada fortuna recomeçava milagrosamente no fragmento imediatamente abaixo, e em alguns casos no verso do próprio quadrado já lido. 

"Isso lhe causou no início um pouco de medo. O livro não era mais algo contínuo que fluía como uma onda, parecia-se mais a uma justaposição de partículas, ou de padrões estáveis de energia.

“Alguns desses livros saltavam raivosos e fechavam-se sozinhos quando eram largados; outros deixavam-se abrir mansamente, e relaxavam abertos sobre a mesa, sem exigir nenhum esforço adicional.  

"Era estranho ver uma história escrita e perceber que essa história escrita não dependia de estar fluindo, se desenrolando, para acontecer. Acontecia; mesmo retalhada em quadros, em datilogramas, e mesmo que o mundo ondulado e íntegro por onde ela antes escorria já não existisse mais, aqueles recortes quadrados diziam a mesma coisa, e faziam dançar e ondular a fita luminosa de memórias que brotava num murmúrio em Mestre Além.”





4 comentários:

Ivan disse...

BT, durante um bom tempo, toda vez que abrir meu ebook vou lembrar deste texto. abs

CORINTIANO VOADOR disse...

Bom, um sofista profissional (fascinado não pelo significado da palavra, mas pelas virtudes encantatórias da palavra). Borges, em um prólogo, declarou que o seu "Funes, o memorioso" nada mais era que metáfora para a insônia. Posso dizer então que o seu texto é uma metáfora para o livro como fetiche? Gostei muito do texto, principalmente pelo foco bipolar, rolo e códice. Imagino que para os primeiros copistas o códice devia ter o mesmo fascínio com que hoje encaramos o leitor digital. Abraço.

Braulio Tavares disse...

Ó texto pode ser visto como um fluxo contínuo ou como uma sucessão de fragmentos, assim como a luz pode ser vista como ondas ou como partículas.

CORINTIANO VOADOR disse...

É. Não tinha considerado esta interpretação.