(manuscrito de Charles Dickens)
Uma frase que abre um livro e passa a escorrer como um rio, não se detém diante de obstáculos, antes os rodeia, fingindo ignorar sua presença, cosendo tudo com seu fio de água, ou quem sabe cortando tudo com sua lâmina prateada que fende a paisagem, pois uma frase que se alonga parece possuir também essa qualidade de gume quente penetrando o requeijão passivo da página em branco, sem ceder à tentação de descansar num ponto, numa aconchegante lagoa, mas pressionando a si própria para que siga além, não canse, procure se assemelhar à façanha praticada por Jonathan Coe em 2001 com uma frase de 13.955 palavras em seu romance The Rotter’s Club, no qual ele presta inclusive uma homenagem ao famoso monólogo de Molly Bloom no Ulisses de Joyce, se bem que ele poderia do mesmo modo ter homenageado o tcheco Bohumil Hrabal, que em Dancing Lessons for the Advanced in Age (1964) produziu uma frase ininterrupta de 117 páginas, uma notável façanha que pode inclusive ter sido uma tentativa de suplantar o seu vizinho polonês Jerzy Andrejewski em The Gates of Paradise (1960), romance de 158 páginas com apenas duas frases, sendo que a segunda delas consta de apenas cinco palavras; não devemos perder de vista, contudo, que estes cálculos baseados em páginas dependem de fatores como tamanho da página, da letra, da mancha gráfica, etc; e que no caso de uma comparação de nível acadêmico e científico o mecanismo “contar palavras” embutido em qualquer processador de texto que se preza teria que ser acionado, e uma tal providência bem que poderia, sem dúvida, ser aplicada retroativamente a outros exemplos citados no artigo de Ed Park no New York Times (aqui: http://nyti.ms/gzKa3q) de onde estou recolhendo estas informações, sendo tais exemplos a novela sem pontuação How it is de Samuel Beckett, composta de 147 páginas cobertas de blocos sem qualquer tipo de pontuação, o que num certo aspecto descaracteriza sua condição de frase, sendo o mesmo questionamento aplicável (segundo Park) ao romance Zone de Mathias Énard (2008), que se estende por 517 páginas mas é subdividido em 23 capítulos que mais uma vez colocam sob dúvida sua condição de uma só frase – e olha que Ed Park é um conhecedor do assunto, sendo ele próprio o autor de Personal Days, um romance que se encerra com uma frase de mais de 16 mil palavras, o que é mais do que suficiente para nos provar mais uma vez o incessante fascínio dos escritores pela Frase Sem Fim, por essa sentença de vida que se quer eterna, sempre indo à frente, sempre se alongando como a própria respiração do autor que se pendura à própria fala e recusa a bala-na-testa de um ponto final.
Um comentário:
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