terça-feira, 23 de agosto de 2011

2542) O atoleiro do realismo (23.8.2011)



Numa discussão recente no websaite Metafilter, a propósito de um filme de Luís Buñuel, alguns leitores se queixavam de que o filme não fazia sentido, era inexplicável, etc. (O filme era Simão do Deserto, e querer encontrar a explicação dele é como querer fotografar o assunto da Terceira Sinfonia de Beethoven). Um leitor sob o pseudônimo de Kozad deu a seguinte contribuição ao debate: 

“Tenho uma teoria a respeito. Já ministrei aulas de apreciação cinematográfica e percebi que as pessoas têm dificuldade de apreciar uma narrativa que não esteja de acordo com um tipo determinado de ‘realismo’. Meus alunos gostavam de Psicose de Hitchcock, por exemplo, mas tiveram problemas com quase todos os outros filmes, por causa de uma certa teatralidade na interpretação dos atores e um certo tipo de convenções emocionais usadas por Hitchcock. Eles não eram capazes de fazer vista grossa a isso. Estavam demasiado habituados a uma maneira de ver filmes que implica em buscar deficiências e erros no modo como a ‘realidade’ é apresentada, e assim nunca se permitem fruir descontraidamente o filme do jeito que ele é. A mesma coisa ocorre quando as pessoas veem filmes feitos antes de 1970”.

O cinema de hoje, com sua obsessiva evolução técnica, produziu uma espécie de hiperrealismo epidérmico, que condiciona o espectador a um tipo de estímulo puramente sensorial. Os filmes de ação de hoje têm som Dolby Stereo, imagem digital de fenomenal nitidez, cortes bruscos, decupagem sequencial em que tudo se encaixa a-b-c-d-e... 

Esta linguagem é uma conquista importantíssima, mas assumiu uma tal hegemonia que deixa o espectador atrofiado em outros aspectos. O espectador é perfeitamente capacitado para assistir e assimilar um filme dos X-Men ou do Homem Aranha, mas não consegue assistir um filme de... Não, amigos, não direi um filme de Luís Buñuel ou de Jean-Luc Godard, não chego a tanto. O espectador do Homem Aranha não consegue assistir um filme de Charles Chaplin.

A experiência cinematográfica ideal deveria ser a exposição do espectador a diferentes estilos, ao modo de narrar de diferentes épocas, diferentes países. Modos de enquadrar, de contar histórias, modos de compor o ritmo narrativo, que em cada cultura evolui de modo ligeiramente diverso. 

Deveríamos cultivar a “filmo-diversidade”, a proliferação saudável de mil maneiras de usar a câmara, o roteiro, a mesa de montagem (ou ilha de edição). 

Se eu vivesse num país onde só passassem filmes de Godard, sairia pela rua em passeata com um cartaz “Queremos Homem Aranha!”. Porque precisamos de olhares diferentes para compor o nosso olhar. 

Os estudantes citados acima não querem a experiência cinematográfica em si, querem comparar o que estão vendo com o que lhes ensinaram que é o jeito certo de fazer. Que coisa terrível fizemos com a arte cinematográfica! Estamos criando um mundo cujo público consiste em alguns bilhões de críticos acadêmicos.








9 comentários:

Kadu Mauad disse...

Na última sexta-feira, discutíamos, em sala de aula, sobre as escolas literárias, quando a professora observou que o realismo, do jeito que foi elaborado, em nada tem a ver com a realidade que é de natureza caótica e não toda certinha e ordenada por começo-meio-fim conforme vemos em um romance de José de Alencar, Eça de Queirós ou Charles Dickens.

Portanto, realismo seria essa coisa fragmentária dos romances psicológicos e fantásticos que estão em consonância com a psiquê e os anseios do ser humano.

Fui claro?

Braulio Tavares disse...

Só saberemos o que é Realismo quando soubermos o que é a Realidade; por definição, nunca. Os sucessivos realismos das artes representacionais (literatura, pintura, etc.) são visões seletivas do que cada cultura e cada época julga importante (entre o Caos do real) revelar, questionar, fortalecer, propor como consenso, etc.

Anônimo disse...

Bom texto.

Ponderações:

a)O naturalismo no "visual" e no linguajar disfarça o artificialismo do personagem ou na história?

b)Aqui ou ali, existem umas titicas de exceções que confirmam a regra: os filmes da trilogia "Dogville" do Trier; um ou outro musical (pavoroso) estilo Moulin Rouge; filmes de Peter Greenway como "Bebê Santo de Macon" ou "O Livro de Cabeceira"...

c)Certa vez li uma entrevista de um diretor da Globo reclamando exatamente do naturalismo... Salvo engano foi o que dirigiu "Decamerão", aquele todo em rimas.

Numa história que contou foi a de crianças que odiaram um programa estilo "Muppets", porque "sabiam" que aqueles bonecos eram manipulados.

Abs

Anônimo disse...

com toda a certeza o expectador do X-Man, não consenguem assistirem a um filme do Chapin, pq isso na verdade é só mais reflexo da superficialidade das pessoas nesse seculo que conseguem mesmos entederem a medicridade desse enlatados artisticos e ideologico. que são servidos em todoas as formas da manifestação artistica! bjos carismaticos

Gustavo disse...

Recentemente entrei em contato com a obra do húngaro Béla Tarr. Creio ter encontrado neste cineasta outsider um extremo da linguagem cinematográfica. Ele é único. Todos os seus filmes são em preto e branco, com ritmo muito lento e contemplativo (Um Tarkovsky elevado ao quadrado), e com planos sequência inacreditavelmente longos. Sátántangó, por "muitos" considerado seu melhor filme, tem 7 horas de duração.
É um cineasta singular. "Singular demais" para estes tempos de filme-videoclip. O que dizer então de sua platéia.

Recomendo que tentem conhecer.

couto.zegeraldo disse...

perfeito, braulio. assino embaixo. eu gostaria de ter escrito um texto tão contundente e cristalino. obrigado. abração,
zé geraldo

Braulio Tavares disse...

Vou procurar esse Béla Tarr, Gustavo, nunca ouvi falar dele.

Braulio Tavares disse...

Anônimo, "realismo" é qualquer receita de naturalismo que por 2 horas nos faça esquecer que estamos vendo atores pagos para recitar frases que alguém escreveu. Pode ser Fellini, novela das 8, chanchada, super-heróis, o escambau. Se conseguimos pensar a sério na história que está acontecendo na tela, e nos envolvemos emocionalmente com ela, pode ser desenho animado, pode ser a história mais surrealista ou absurda, é realismo.

Chico Lopes disse...

Uma vez Borges (o escritor argentino) fez uma pergunta importante: a que gênero literário pertence o Universo? ao realismo ou ao fantástico?
Foi o que me lembrei agora. Gêneros e escolas não importam para nenhuma arte. Importa que o artista tenha talento e se expresse como quiser. Realismo, a rigor, é também uma forma de invenção, não é?