quinta-feira, 2 de junho de 2011

2571) História curta (1.6.2011)




(ilustração: Gustave Doré)

Como eu ia dizendo, faz uns quinze anos. 

Eu tinha ido passar o feriadão na fazenda de um amigo, no interior de Pernambuco. Perto de lá ficavam as ruínas de um antigo Engenho abandonado. Durante o dia a gente caminhava e tomava banho de rio; de noite, cerveja e violão. Depois do terceiro dia ninguém agüentava mais uma rotina tão estafante. 

Começamos a procurar alternativas. O dono da casa sugeriu que ficássemos fazendo hora até meia-noite e fôssemos para as ruínas do Engenho, aproveitando que era noite de lua. Por quê?, perguntamos. Ele explicou que o Engenho era mal-assombrado, e que à meia-noite apareciam coisas esquisitas lá. 

As esposas (havia várias esposas na turma) disseram que “nem mortas”, e que fôssemos nós, o contingente masculino. Um dos caras piscou o olho discretamente e disse que tudo aquilo era pretexto nosso para um encontro clandestino com algumas moçoilas da vila próxima. Houve um certo reboliço, e, para encurtar a história, acabou indo todo mundo.

A verdade é que estávamos mesmo curiosos para ver os possíveis fantasmas, e não havia mulher nenhuma envolvida. Ou melhor: havia agora, as nossas, e íamos ter que agir de acordo. 

Entrar num engenho mal-assombrado é um desafio para qualquer sujeito, requer atenção, concentração, dedos cruzados, fé no agnosticismo e assim por diante. Mas, e quando são três caras e três mulheres? Não é preciso nenhum ectoplasma para que fiquem em polvorosa, porque em qualquer sombra elas veem uma cobra e em qualquer folha roçagante um lacrau. 

Mas subimos a colina, forçamos uma porta, entramos lá dentro, lanternas em punho; e, pra encurtar a história, a verdade é que apareceu mesmo uma alma.

Não sei se era alma, mas era sem dúvida uma luminosidade difusa que persistia mesmo quando apagávamos nossas luzes. Surgia por trás de umas coisas enormes e bojudas que imaginei serem caldeirões. 

Pelas brechas do telhado em ruínas entrava uma luz muito pouca, mas não era avermelhada como aquela. Víamos diante de nós um círculo vermelho que em certo momento pareceu uma fogueira vista verticalmente de cima e em outros uma rosa desabrochando. 

Fomos chegando perto; não sei o que pensavam os outros, todos em silêncio, mas eu achei que era um reflexo de alguma fogueira de ciganos, sei lá o quê. Ao chegarmos perto da parede aquilo pareceu se expandir; não era fogo, era algo hologrâmico, impalpável, e mal essa luz nos envolveu eu vi, através dessas volutas de luz vermelha, que as formas bojudas punham-se em movimento, desdobrando patas articuladas que rascavam nas pedras do chão, erguendo tentáculos bífidos que meneavam na penumbra rósea. 

Não senti medo. Senti uma espécie de paz, como se uma ampola de anestesia mental me estivesse sendo injetada por inteiro, sossegando-me, imobilizando-me, preparando-me para o que viria a seguir. Nem me dei o trabalho de saber se o mesmo estava acontecendo com os outros, mas a verdade é que, pra encurtar a história, nenhum de nós voltou.





Um comentário:

Gustavo disse...

Memórias Póstumas de Bráulio Tavares.