quinta-feira, 3 de junho de 2010

2105) Patativa do Assaré (6.12.2009)



Este ano comemora-se o centenário de Patativa do Assaré, o grande poeta popular cearense. Patativa, que nunca encontrei pessoalmente, foi revelado para minha geração através dos versos musicados por Raimundo Fagner, e, depois, pela coletânea Cante lá que eu canto cá, publicada em 1978 pela Editora Vozes, um documento precioso. Patativa era um poeta “3 em 1”: cordelista, poeta matuto e poeta erudito.

O Patativa do cordel foi o que eu vim a conhecer por último, através da antologia organizada por Sylvie Debs para a Editora Hedra (São Paulo). Tem cordel de fantasia (História de Aladim e a lâmpada maravilhosa), cordel político (O padre Henrique e o dragão da maldade), cordel social (Emigração e suas consequências, ABC do Nordeste flagelado), cordel satírico (Brosogó, Militão e o Diabo). Estrofes impecáveis, português correto, imaginação ágil: se me mostrassem sem dizer de quem era, eu pensaria serem de Athayde (“Brosogó”) ou de Delarme (“Aladim”). Jamais imaginaria serem do autor dos poemas matutos que o Brasil conhece.

O segundo Patativa é justamente o poeta matuto, o que escreve “derna di minino”, “seu dotô”, “Brasí”, “puliça” e assim por diante. O poema matuto é uma espécie de “poesia étnica”, poesia que esquece a norma culta da língua e procura registrar os modos de falar de uma comunidade linguística – no caso, os homens rurais nordestinos. (No plural, porque o caririzeiro não fala igual ao sertanejo, que não fala igual ao matuto do brejo, que não fala igual ao da Zona da Mata.) Muitos criticam essa poesia por distorcer e estropiar o português. Discordo. Acho que isso só acontece quando um poeta urbano, que não conhece o interior, tenta se fingir de matuto e escreve errado de propósito, por imaginar que todo matuto é analfabeto. Quando Patativa ou Zé Laurentino escrevem assim, contudo, é com conhecimento de causa. Quando Guimarães Rosa, Elomar ou Jessier Quirino usam o linguajar “étnico” como matriz verbal, é porque conhecem e respeitam esse linguajar.

O terceiro Patativa é o poeta erudito, autor de sonetos impecáveis do ponto de vista da métrica, da rima, da gramática e da norma culta, como “O Pau d’Arco”, “Minha serra”, “O peixe” e inúmeros outros incluídos em Cante lá que eu canto cá. Patativa teve pouca educação formal, mas é o tipo do sujeito que se educou por conta própria. Vê-se que conhecia bem a gramática, decerto porque lia gramáticas para se informar. (Quantos brasileiros formados, de anel no dedo, no campo das Letras, já leram uma gramática? Cartas para a redação.) Patativa escreve oitavas camonianas (ABABABCC) num português que não envergonharia Camões, como em “O Inferno, o Purgatório e o Paraíso” – quantos poetas chamados eruditos são capazes de fazer o mesmo? Ver Patativa apenas como um poeta matuto e ingênuo da roça, ou como um “cantador de esquerda” é empobrecer a obra de um poeta mais complexo do que a maioria dos seus leitores.

Um comentário:

Ítalo M. R. Guedes disse...

Bravo! Apoiado até às vírgulas.