segunda-feira, 19 de abril de 2010

1931) Farrapos de canção (17.5.2009)



Era de sábado para domingo. Passava das duas da manhã e eu estava na sala, lendo T. S. Eliot. Dizer que a madrugada era silenciosa seria como dizer que o céu era brilhante, porque na rua adormecida brotava o barulho de uma festa na terceira casa à esquerda, do lado oposto ao meu prédio, uma casa onde algumas vezes por ano reúnem-se jovens para falarem todos ao mesmo tempo, dar gargalhadas, e ouvir discos cantando a plenos pulmões. O repertório musical sempre começa com os sucessos do momento, mas com o passar das horas vai atingindo camadas geológicas mais profundas. Em geral, às duas da manhã eles chegam aos anos 1970.

Foi então que ergui os olhos do livro. A canção que brotou de repente me era tão intimamente familiar que era de mim que parecia estar brotando. Uma parte de mim que até alguns segundos atrás eu não lembrava que existia. Como um músculo que usamos sem querer, num movimento imprevisto, e é como se ele nos dissesse: “Olha aqui, eu estava aqui, esse tempo todo”. A canção era medíocre, em inglês, com guitarras, um teclado monopolizante, uma tríade de vozes bem comportadinhas. Que banda era aquela? Nunca saberei, nem me importei com isto, porque naquele instante o que surgiu na minha mente foi outro momento, muitos anos atrás.

Eu estava de passagem por uma cidade estrangeira, sozinho, sem conhecer ninguém, sem falar o idioma, e desfrutando do prazer indescritível do anonimato. O formato das casas era diferente, o cheiro das ruas, o dinheiro, os rótulos das cervejas, as placas, os sinais de trânsito, as pedras do calçamento. Essa abundância de irrealidade me dava a liberdade gozosa de quem está sonhando, sabe que está sonhando, e sabe que pode fazer o que quiser, porque está só sonhando. Com as mãos nos bolsos e a mente nas nuvens, eu vagava de noite por entre uma multidão de extras, parando num bar, depois noutro, com a sensação triunfante de ser a única pessoal real no mundo inteiro.

Foi quando de repente, ao tomar uma cerveja num balcão, emergiu do aparelho de som, que até então só tocara músicas invisíveis aos meus olhos, uma canção em inglês, com guitarras, um teclado monopolizante, uma tríade de vozes bem comportadinhas. Metade do gole de cerveja voltou para o copo. Levei alguns segundos para me recuperar do susto, mas tudo que havia à minha volta foi contaminado por aquela canção americana que trouxe para ali, de golpe, de súbito, com a implacabilidade dos fatos consumados, uma madrugada remota num subúrbio de Campina, em que aos 20 anos tomei um pileque bukovskiano e alguns samaritanos me arrastaram para uma escadinha nos fundos do clube, na qual me livrei de tudo quanto me incomodava o corpo e a alma. Quedei-me ali ao som daquela canção, estirado, olhos cerrados, aplaudindo com as mãos do espírito aquela banda B cuja falta de talento me redimia da minha própria, e cujo esforço bem intencionado me aconselhava a persistir. Dei um suspiro e retomei a leitura dos Quatro Quartetos.

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