quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

1608) A perfeição é a morte (8.5.2008)




Já comentei aqui (“O mundo em progresso”, 2 de março) o conto de Arthur C. Clarke “Os Nove Bilhões de Nomes de Deus”, em que o Universo deixa de existir quando um super-computador calcula todos esses nomes. Com isto, a Humanidade cumpre sua função e deixa de ser necessária. Clarke nos induz a pensar que o Universo é um processo que busca a completude, e que, uma vez completado, não terá mais razão de ser. Por outro lado, essa lista dos nomes de Deus talvez não tenha que ser um recenseamento de nomes próprios (Allah, Iavé, Adonai, etc.) mas uma reconstituição verbal de todos os elementos que são o reflexo do Divino no mundo material, seus átomos, por assim dizer. Como um nome contém (de acordo com certas doutrinas) a totalidade da coisa que nomeia, no momento em que conseguíssemos relacionar tudo que existe no Universo material teríamos criado um reflexo total desse Universo no mundo da palavra. O Universo se veria duplicado. Estaria, impossivelmente, transformado em dois Universos idênticos, e assim um deles teria que deixar de existir.

O leitor há de recordar um dos contos mais curtos e mais conhecidos de Edgar Allan Poe, “O Retrato Oval” (1842), onde se conta a história de um artista que está pintando o retrato a óleo de sua mulher. À medida que ele se dedica ao trabalho, ao longo de meses, a mulher enfraquece, fica anêmica. No instante em que ele dá a última pincelada, exclama: “Isto aqui é a vida, a vida propriamente dita!” E quando olha para a esposa percebe que ela acabou de morrer. O retrato era tão perfeito que equivalia a uma duplicação da mulher; e não podem existir no Universo dois seres idênticos. No momento em que uma duplicação assim ocorra, um dos dois tem que deixar de existir.

Esse impasse está na raiz de todas as histórias de ficção científica que envolvem a desmaterialização e rematerialização de objetos ou de pessoas. O famoso “teletransporte” ou “teleportagem” da FC seria, em tese, um processo em que na cabine A o corpo de um sujeito é desmaterializado, transformado em informação, essa informação é remetida à velocidade da luz para uma cabine B, e ali é usada para materializar um corpo idêntico ao primeiro. Os desenhos do Cartoon Network nos acostumam desde a infância a essa noção básica, que é utilizada apenas para permitir viagens instantâneas de um lugar para outro. Escritores mais espertos, contudo, questionam o processo. Uma das formas de questioná-lo é perguntar: “E se o primeiro corpo não precisasse ser desmaterializado? Se bastasse escaneá-lo, e depois produzir um corpo igual? Teríamos dois gêmeos idênticos? Poderíamos produzir um exército de clones?” Obras de FC como Rogue Moon de Algis Budrys (1960) e The Prestige de Christopher Priest (1995) trataram esse tema indo ao fundo de suas complicações existenciais e filosóficas. Se um sujeito igual a mim pode ser criado artificialmente, qual deles sou eu? Como distinguir entre o original e a cópia?

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