sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

1448) O soneto anagrama (3.11.2007)





(o quadro de Leutze)

A intersecção da Literatura com os quebra-cabeças (jogos em que uma regra arbitrária precisa ser seguida à risca) nos dá os palíndromos, os lipogramas e outros barroquismos já comentados nesta coluna. 

Folheando o magnífico livro de Douglas Hofstadter Le Ton Beau de Marot (New York: Basic Books, 1997), que examina problemas abstrusos de linguagem e tradução, encontrei um soneto de um tal David Shulman, intitulado “Washington Crossing the Delaware”. O título alude a uma famosa pintura a óleo de E. G. Leutze que retrata um momento da Guerra da Independência norte-americana em 1776, quando George Washington cruzou com suas tropas o Rio Delaware para pegar de surpresa as tropas britânicas.

Não transcreverei aqui o soneto inteiro. Para ilustrar minha tese (que é a mesma de Hofstadter) basta-me o primeiro quarteto, que assim diz: 

A hard, howling, tossing water scene: 
strong tide was washing hero clean. 
‘How cold!’ Weather stings as in anger 
O silent night shows war ace danger!

Os versos dizem algo como: 

Uma cena fluvial árdua, cheia de uivos e de agitação: 
uma poderosa maré lavando por inteiro o herói. 
‘Que frio!’ O tempo dá agulhadas, como que furioso. 
Oh, noite silenciosa, que mostra ao ás da guerra o perigo! 

Não boto a mão no fogo por esta tradução, porque o texto original me parece truncado, sem beleza. (Quem quiser o soneto todo é só pedir.)

Mas... Faça uma pausa, amigo. Confira as letras de cada verso, e perceba que cada uma das quatro linhas citadas acima é um anagrama perfeito (ou seja, contém exatamente as mesmas 29 letras, inclusive as repetições) do título do soneto. 

E o soneto todo é assim: suas catorze linhas são catorze anagramas do próprio título, e conseqüentemente todas são anagramas umas das outras. E o soneto inteiro retrata, de maneira aceitável, a cena descrita. É aquilo que os franceses chamam de “tour de force”, uma demonstração fenomenal de habilidade.

Isto é poesia? Não sei. Tecnicamente é, pois se trata de um soneto que obedece às regras básicas da forma, ainda que não seja um grande soneto, ou sequer um bom soneto. 

Coloca uma questão curiosa: um péssimo poema é poesia? O que define a presença da poesia: a presença de um conjunto de regras, ou a qualidade literária do resultado? 

O texto de Shulman pertence a uma zona intermediária entre a literatura e o que eu chamo de “ludismo verbal”, que inclui desde os travalínguas dos repentistas até os caligramas (poemas cujas palavras criam um desenho na página) dos poetas barrocos portugueses ou de Guillaume Apollinaire.

A façanha de Shulman talvez só seja possível numa língua como o inglês, mais monossilábica que a nossa. Duvido que alguém consiga compor em português um soneto com quinze anagramas (título mais catorze versos) que faça um mínimo de sentido. 

(Pronto, já sei que acabo de atrapalhar a vida de meia dúzia de malucos, os quais de agora em diante se dedicarão a provar que é possível, sim.)





2 comentários:

denise bottmann disse...

e todo rimadinho, como se não bastasse!
muito legal

Braulio Tavares disse...

Denise, você conhece esse livro de Douglas Hofstadter, "Le Ton Beau de Marot"? É um livro imenso discutindo tradução de poesia (com dezenas de traduções de um único poema, de Clément Marot) e linguagem em geral, por todos os ângulos possíveis.