segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

1425) Hitler e minha mãe (7.10.2007)




Herdei de meu pai a poesia e de minha mãe a prosa. Esta é uma simplificação excessiva de uma situação mais complexa, pois o fato é que era Dona Cleuza quem me cantava folhetos de cordel e romances orais, e Seu Nilo quando estava na veia era um contador de histórias que não devia a nenhum outro. 

Mas não há dúvida de que foi ele quem me aplicou Bilac, Augusto, Castro Alves, até poetas hoje obscuros como Guerra Junqueiro ou Luís Dantas Quesado.

Já minha mãe costumava contar histórias sobre a época da II Guerra Mundial e seus reflexos no Brasil e em Campina. O monte de ferro-velho acumulado pelas autoridades para ajudar no esforço de guerra, ali na confluência entre as ruas João Pessoa e João Suassuna, em frente ao antigo Banco Industrial. Os blecautes que havia em Olinda (onde ela e meu pai moraram depois de casar), as luzes todas apagadas para não atrair a aviação inimiga (nunca entendi por que diabos Hitler iria querer bombardear Olinda). 

E havia uma historieta, provavelmente apócrifa, mas que para mim faz parte das lendas urbanas que um tempo de guerra é mais propício a criar do que um tempo de paz.

Hitler costumava aprisionar num país invadido, a Polônia por exemplo, centenas de crianças, e as trancafiava num imenso galpão. Ali os meninos e meninas eram deixados durante dias e noites sem comer, sem nada. 

Quando o desespero estava grande, entrava um oficial nazista de megafone em punho e gritava: “Vocês estão com fome?!” Havia uma gritaria que sim. E ele tornava: “Pois peçam comida a Deus! Vamos, gritem! Gritem bem alto para que ele ouça!” E saía. Os garotos começavam o maior berreiro: “Deus, me dê comida! Deus, me dê um copo dágua!”

Por motivos teológicos que não tenho espaço para analisar aqui, Deus não se manifestava, e um dia depois a fome tinha recrudescido ainda mais, devido à reversão da expectativa. Era o momento em que o oficial voltava. Perguntava se ainda tinham fome, recebia a resposta ululante que era de se esperar, e aconselhava: “Pois peçam comida a Hitler”. E ia embora. 

Os meninos, que a esta altura não tinham mais nada a perder, começavam o coro: “Hitler, me dê comida! Hitler, me dê água!”

E aí (ela gesticulava, encorpava a voz, abria os braços para sugerir uma encenação digna de Spielberg) abriam-se enormes clarabóias no teto e de lá desciam, mediante correntes e engrenagens, vastas plataformas de madeira cobertas com terrinas fumegantes, bandejas de pastéis e sanduíches, receptáculos cheios de macarrão com molho, carnes suculentas, jarras de água, de leite e de suco, frutas em abundância, e doces, doces, muitos doces. Os garotos atiravam-se sobre aquilo, balbuciando orações e agradecimentos ao Fuhrer.

Minha mãe não era nazista, caro leitor. Ela usava isto como um conto caucionário, uma parábola acauteladora. No fim da história ela aproximava o rosto, encatitava o olho, erguia no ar o indicador e sussurrava, com intensidade: “Des-con-fie!”