A propósito de uma exposição sobre Clarice Lispector que ocorre em São Paulo, Zuenir Ventura, num artigo no “Globo”, perguntou-se, e a nós: “Como uma escritora tida como hermética, inacessível, introspectiva, é capaz de tanto sucesso de público?” A pergunta do mestre Zuenir é a mesma que me fiz por muitos anos, até perceber que não tem resposta porque é uma pergunta iludida, uma pergunta cujas premissas não batem com a realidade. Eu, por exemplo, me perguntava como é que uma autora tão intelectual conseguia ser tão lida, copiada, citada e imitada por adolescentes. Ora, não é bem isso. Se existe uma autora brasileira que não é intelectual é Clarice. Ou melhor: ela não é intelectual no sentido livresco-erudito da palavra, e sim no sentido metafísico, no sentido em que o jagunço Riobaldo é um dos grandes intelectuais da nossa literatura.
Clarice não é uma racionalista: é uma intuitiva que usa palavras simples e diretas para exprimir sensações mentais tortuosas e obscuras. Introspectiva? Isso, sim. Tudo que lhe acontece é da retina para dentro. Ela é capaz de escrever um livro inteiro narrando os poucos minutos de contemplação mútua entre uma mulher e uma barata numa cozinha. Enredo não era seu forte, porque quando ela começa a contar uma história a história dispara a galope para dentro dela e começa a contá-la. Tudo acontece dentro da mente dela. Mesmo quando descreve uma cena com pessoas almoçando e conversando numa sala não temos a impressão de ver a sala, e sim de estar olhando uma foto de Clarice e na pupila do seu olho estar acontecendo a cena, como se fosse uma janelinha do YouTube.
Num texto publicado aqui (“Claríssimo Espectro”, 14.11.2004) falei que ela criava a loucura como quem cria um cachorro dentro do apartamento. Era o seu estilo de conviver com o paradoxo, de dizer “eu sou mais forte do que eu”, “Eu não sou Tu, mas mim és Tu” e outros paradoxos lógicos que a Razão não comporta mas que são a essência da Literatura. Para a lógica aristotélica, A é A e B é B, e a questão acaba aí. Para a sensibilidade literária, A pode ser B. Ou pode ser X, pode ser 345, pode ser um coelho correndo em cima de um muro. Qualquer coisa, no momento da fagulha poética, pode ser qualquer outra, porque o Inconsciente (isto que popularmente é chamado de “emoção”) é o amálgama que “dá liga” entre as duas, que as funde numa única essência. E o Inconsciente não é racional. Pode ser analisado racionalmente, como descobriram Freud, Jung, etc., mas ele próprio não funciona pelas leis da Razão e da Lógica.
Por que motivo os adolescentes em geral entendem e amam Clarice? Porque em seus momentos de introspecção é assim que eles se sentem, são A e são Não-A ao mesmo tempo, movidos pelo choque e antagonismo entre corpos em plena metamorfose, pressões familiares e sociais, obrigação de tomar partido em disputas que não entendem, exigências e dilacerações que os deixam sem saber se são uma pessoa ou uma barata.
4 comentários:
Oi, Braulio! rapaz, que maravilha ter encontrado o endereço desse seu blog, casualmente, no Chacalog.
Seus textos sao òtimos, escorrem que é uma beleza, em forma e conteudo. God bless! :-) Melhor ainda, que tem tanta coisa pra ler nos arquivos. Muito bom, muito obrigado, Grande Abraço,
Lola
Grande Lola... Thanks pela visita, venha sempre, dê palpite. Lugarzinho bom pra reencontrar as pessoas, esse mundo virtual. Grande abraço!
Acho que Clarice encanta os jovens porque teve uma revolta adolescente e poética até o fim. Nunca abriu mão disso.
Bráulio, como sempre, ótimo texto. Gostei da referência velada ao Não-A, ao fim do texto. Para os fãs não aristotélicos de ficção científica?
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