quarta-feira, 17 de junho de 2009

1092) Um clássico (15.9.2006)



Num ensaio famoso (no livro Outras Inquisições), Jorge Luís Borges propôs a seguinte definição para o conceito de clássico da literatura: “Clássico é aquele livro que uma nação ou um grupo de nações ou o prolongado Tempo decidiram ler como se em suas páginas tudo fosse deliberado, fatal, profundo como o cosmos e capaz de interpretações sem fim”. Não é, adverte ele, um livro “que possui tais ou tais méritos”, ou seja, não há nenhuma qualidade objetiva (tema, gênero, estilo) que se possa “a priori” atribuir-lhe. O que caracteriza um clássico é a resposta coletiva e individual que ele produz nas sociedades e nas pessoas, por ser um livro que se lê “com prévio fervor e misteriosa lealdade”.

Borges propõe um conceito duplo, ao mesmo tempo intelectual (um livro capaz de infinitas interpretações) e emotivo (um livro do qual já gostamos antes mesmo de lê-lo). Curiosamente, não é outra coisa senão uma visão religiosa de literatura. A atitude infinitamente interpretativa que um clássico exige é a mesma atitude que a Bíblia exigia dos cabalistas medievais, como ele comenta em “Uma Vindicação da Cabala” (no livro Discussão): “Imaginemos (...) que Deus dita, palavra por palavra, o que pretende dizer. Esta premissa (que foi assumida pelo cabalistas) faz da Escritura um texto absoluto, onde a colaboração do acaso é da ordem de zero”. O que faz da Bíblia uma espécie de clássico dos clássicos: “Um livro invulnerável à contingência, um mecanismo de infinitos propósitos, de variações infalíveis”.

Assim seria, para o mundo dos leitores, o Ulisses de Joyce ou o Grande Sertão de Rosa... Livros inesgotáveis, livros interminavelmente geradores de outros livros. Este modo de ver parece indicar que os livros intensamente intelectuais, complexos, elaborados, têm mais chances de se tornarem clássicos, porque nos dão a impressão constante de que uma vasta inteligência os urdiu, e de que qualquer mistério ali tem uma resposta já pronta. Mas, o que dizer então de clássicos coletivos como as Mil e Uma Noites ou a Odisséia ou o Bhagavad Gita? São livros igualmente inesgotáveis, mas que foram compostos por um colegiado aleatório de diferentes pessoas em diferentes épocas, sendo razoável supor que em momento algum houve uma inteligência central que unificasse todos os mistérios e todas as respostas.

Isto parece indicar que o acaso, a contingência e a colaboração casual de mentes anônimas pode chegar a produzir não apenas uma obra que faça sentido, mas uma obra permanentemente geradora de novos sentidos. O Acaso é capaz de produzir uma Ordem. Assim como na Biblioteca de Babel existem “léguas de cacofonias insensatas” mas de vez em quando aparece uma frase ou uma página que diz alguma coisa, no mundo da literatura existem léguas de textos superficiais ou repetitivos ou insignificantes mas de vez em quando aparece um Clássico. A Bíblia é um texto inesgotável produzido pelo Espírito Santo, e um Clássico é o seu equivalente, produzido por um indivíduo ou um grupo de indivíduos.

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