No dia em que escrevo, a sexta-feira, 4 de agosto, desde cedo não param de chegar emails de amigos do Brasil inteiro, todos com a mesma triste notícia: morreu em Salvador o cineclubista Luiz Orlando da Silva.
Não procurem nos jornais: ele não era um cara famoso. Orlando, como sempre o chamei, era uma formiguinha incansável da luta cineclubista, viajando a Bahia inteira, exibindo e debatendo filmes, fundando cineclubes, organizando encontros e festivais, carregando o imenso piano invisível onde os cineastas executam seus concertos.
Conheci-o em 1973, quando comecei a freqüentar, juntamente com José Umbelino e Romero Azevedo, a Jornada de Curta-Metragem organizada por Guido Araújo em Salvador. Orlando era o braço direito de Guido lá no Clube de Cinema da Bahia. Era um neguinho franzino, de cabelo curto, óculos de grau numa armação prateada, puxando um pouco da perna, mas sempre em movimento, sempre incansável, sempre com uma pilha de livros, revistas e jornais embaixo do braço.
No Instituto Goethe, onde funcionava o Clube, era o faz-tudo. Era ele quem ia ao aeroporto, tanto para pegar as latas de filme quanto para recepcionar os convidados da Jornada. Ia à Censura Federal levar a programação, resolvia os pepinos nos hotéis, levava o material para a imprensa (não havia fax ou email).
Quando fui morar em Salvador e trabalhei no Clube, depois de 1977, nos revezávamos na sala de projeção, na bilheteria, na burocracia, na organização dos intermináveis debates (cineclubista adora debater).
Orlando tinha sempre uma referência obscura a respeito de qualquer assunto. Era uma edição espanhola dum livro de Eisenstein, um artigo sobre Glauber saído na Itália, uma crítica do filme mais recente de Wim Wenders.
Generoso, solidário, conhecia todo mundo em Salvador, sabia a cidade de cor. Qualquer problema, eu me socorria dele, que dizia: “Deixa comigo, eu conheço um cara em Brotas (ou na Barroquinha, ou no Garcia...) que quebra esse galho rapidinho...” Era nosso anjo da guarda.
Vi-o pela última vez há poucos anos, quando fui dar uma palestra no Instituto Goethe e ele foi me buscar no aeroporto. Demos um abraço apertado e eu falei: “Tá vendo como é a vida, Orlando, agora eu sou um senhor grisalho, e o cabeludo é você...” Ele estava usando umas tranças rastafari que lhe caíam nos ombros, e morreu de rir. Somente agora, nos obituários, fiquei sabendo que era cinco anos mais velho que eu.
Nas belas cenas iniciais de Os Sonhadores, Bertolucci e o roteirista Gilbert Adair dizem que os verdadeiros cinéfilos gostam de ver os filmes lá na fila da frente, para receberem as imagens antes do resto da platéia, antes que as elas cruzem todas as filas e, voltando a ser do tamanho de um selo postal, voltem para dentro do projetor. Eu sou assim. Orlando também. Ele não agüentou esperar e foi ocupar seu lugar reservado na Cinemateca Universal, foi ver os filmes do futuro, no lugar onde esses filmes estão sendo feitos.
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