domingo, 1 de março de 2009

0856) A sabedoria das massas (14.12.2005)



Vemos o tempo todo propagandas dizendo: “Dez milhões de pessoas já viram este filme... dez milhões de pessoas não podem estar erradas!” Dezenas de milhões de pessoas aceitam plenamente este argumento, e vêem nele a expressão da verdade. Se dez milhões de pessoas compram uma coisa, essa coisa é necessariamente boa. As multidões não erram. A voz do povo é a voz de Deus.

A falácia da pseudo-sabedoria das multidões é proporcional à falácia oposta, a da pseudo-sabedoria das elites. “Isto aqui não é pra todo mundo – é pra quem sabe”, é uma forma igualmente eficaz de engambelar um besta. “Tenha acesso ao universo exclusivo dos usuários do MerreCard”. “Isto foi feito para pessoas especiais como você”. E assim por diante. Parte-se do princípio de que só quem sabe o que é bom é um grupinho seleto de indivíduos privilegiados.

Millôr Fernandes definiu Esquerda e Direita desta maneira: quem acredita na sabedoria do Povo é de esquerda, e quem acredita na sabedoria das Elites é de direita. Posições políticas, intrigas de governo e oposição, troca-troca de partidos, discussão teórica de manuais, tudo isto, se fervido e filtrado, se resume a essas duas crenças opostas e fundamentais.

Diz-se por aí que Democracia é “o governo do povo”. Na verdade, democracia é o governo que tenta fazer uma síntese precária entre as tendências da Direita e da Esquerda. No regime democrático, a Multidão elege uma Elite para governar em seu nome. Teoricamente, teríamos aí as duas “sabedorias” reunidas: a massa anônima escolhe algumas centenas de representantes (teoricamente, como sempre, aqueles mais capazes, mais brilhantes, mais carismáticos, etc.) e estes se tornarão a elite governante.

O que acho mais interessante nisso tudo é perceber como é reconfortante, para algumas pessoas, pensar que estão fazendo algo certo pelo simples fato de estarem indo na mesma direção que vai a boiada. Eu entendo esse sentimento. Ele nos dá uma sensação de paz, nos envolve numa aconchegante nuvem de oblívio e de abdicação, anestesia aquele pedaço do cérebro que tanto nos incomoda – o que é responsável pela tomada de decisões, pela aceitação de responsabilidades. Juntar-se à massa é transferir para ela o poder de decidir por nós. A gente vira uma rolha de cortiça, pula dentro do rio e deixa-se levar em suas águas. É a sedução da unanimidade, que nos dispensa de justificar esta ou aquela escolha.

O elitismo, por mais que conduza a distorções (desde a auto-suficiência dos eruditos até a prepotência das ditaduras) pelo menos envolve a vontade de tomar decisões, mobiliza a vontade, exprime uma intenção clara de fazer isto e não aquilo. As elites sabem o que querem, e arregaçam as mangas para consegui-lo. E o perfil de nossa época, formatada por esta patética “democracia” para a qual não temos um substituto melhor, é este: massas eletronicamente doutrinadas delegando o Poder às elites que as manipulam.

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