terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

0839) A arte da dupla leitura (24.11.2005)




A Disneylândia de Hong Kong foi inaugurada, e é curioso ver os relatos sobre as adaptações feitas no projeto básico para adequá-lo aos costumes chineses. Uma das principais influências é a desse tal de “Feng Shui”, que eu pensava que era uma invenção da Zona Sul carioca, mas não, existe lá na China também. 

O parque inteiro foi planejado para atender a essa arte de orientação espacial das instalações, assegurando o fluxo livre de energias positivas, As alamedas, por exemplo, são curvas, em vez de retas; as montanhas ladeiam o parque, cuja entrada fica virada na direção do mar. O fato de haver uma pequena ilha no oceano em frente é considerado positivo. Os chineses não gostam de vastas extensões contínuas de água. Para eles, mar sem ilhas é como céu sem estrelas.

O mais interessante são as aliterações verbais que dão boa sorte. O restaurante do hotel do parque tem 2.238 lótus de cristal em sua decoração. Por que um número tão exato? Porque o número 2.238 em chinês soa parecido com a frase “riqueza com facilidade”. 

O hotel, por outro lado, não tem o quarto andar (como muitos outros prédios na China), porque a palavra “quatro” soa parecido com a palavra “morte”. Nas lojas de souvenir não se acham relógios; é um presente pouco usado na China, porque em chinês a frase “dar um relógio” soa parecido com “ir a um enterro”.

Não vamos mangar deles – afinal, em nossa própria cultura o número 24 sugere que um sujeito é homossexual, o número 171 no Rio é sinônimo de desonestidade, e o número 13 costuma dar azar (principalmente a quem se veste de preto e vermelho). 

O mais interessante é essa superstição baseada na semelhança fonética das palavras. A língua chinesa é tremendamente monossilábica, e depende muito do modo de pronunciar. Um trechinho como, sei lá, “chuan cheng djun kai” pode significar “Ó minha Amada, teus olhos parecem dois lótus ao luar do verão” mas com mudança de entonação (“tchuan tchen joon kiai”) pode querer dizer “Eita, chegou a conta do meu celular”.

O escritor de ficção científica Cordwainer Smith, criado na China, foi conselheiro militar americano na Guerra da Coréia. Era difícil conseguir fazer com que soldados chineses se rendessem, porque a rendição era considerada uma desonra. Smith espalhou milhares de panfletos pedindo aos chineses que, ao se entregar, gritassem para os americanos as palavras chinesas “amor”, “dever”, “humanidade” e “virtude”, que, pronunciadas em conjunto, soam como as palavras inglesas “I surrender” (“Eu me rendo”). 

Uma bela utilização da ambigüidade fonética, sons quase iguais com significados completamente diferentes. Smith considerava este o ato mais importante de sua biografia (salvou centenas de vidas), e seus belos contos de FC são cheios de personagens e lugares com nomes poéticos, às vezes com um toque oriental: Alpha Ralpha Boulevard, Lady C’Mell, Clown Town, Lord Jestocost, Lord William Not-from-here, Magno Taliano, Dolores Oh.








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