quarta-feira, 5 de novembro de 2008

0632) A vida gosta de mim (29.3.2005)



Está em cartaz no Rio um musical sobre Braguinha, ou “João de Barro”. Muita gente não lembra, muita gente nunca ouviu falar, mas o teste da fama de um compositor não é seu nome nem sua foto, é cantarolar alguma música sua. No caso de Braguinha, são centenas. Pode-se começar com “Existem praias tão lindas, cheias de luz / nenhuma tem o encanto que tu possuis...” Era a voz de Dick Farney, cantando as belezas de Copacabana; uma época romântica do Rio de Janeiro, um Rio sensual onde as mulheres usavam maiô completo e Copacabana ainda não era submundo. Ou poderíamos cantar “Eu fui às touradas em Madri / e quase não volto mais aqui, i-í...” Foi a música que o Maracanã inteiro cantou quando o Brasil enfiou 6x1 na Espanha, na Copa de 50.

Vou ficar por aqui, porque o repertório de Braguinha é vasto (não esqueçamos as canções infantis: “Pela estrada afora eu vou tão sozinha / levar estes doces para a vovozinha...”). O que eu quero lembrar aqui é o título deste espetáculo em cartaz, uma frase que ouvi Braguinha dizer numa entrevista à TV, há cerca de vinte anos, e que nunca me saiu da cabeça: “A vida só gosta de quem gosta dela”.

Fala-se muito em auto-ajuda hoje em dia, e meus amigos intelectuais costumam ridicularizar os livros de auto-ajuda, achando que quem ajuda a si mesmo é um idiota. Bem, eu me acho tão intelectual (e tão idiota) quanto qualquer um que vocês botarem na minha frente, mas o intelecto nunca me salvou de, neste ou naquele momento, ficar deprimido, pessimista, arrasado, com vontade de dormir e não acordar mais (dizem que os intelectuais se suicidam pouco porque nunca conseguem produzir um bilhete-de-despedida que considerem à altura da própria reputação). E em muitos momentos que me senti assim, em momentos em que ficava me considerando “a mosca que pousou no cocô do cavalo do bandido que morre no trailer dum filme nacional”, nesses momentos me vinha à mente a insinuação melíflua de Fernando Pessoa (“Se te queres matar, por que não te queres matar?”), e me vinha a vozinha miúda e quase infantil de Braguinha, na TV, com sua cabeleira já branca, dizendo com singeleza: “A vida só gosta de quem gosta dela”.

Parece um truísmo, uma obviedade, uma tautologia. Mas eu olhava em volta e via divergências. Me lembro da banda recifense “Devotos do Ódio”, título inspirado num livro de José Louzeiro. Parece que esse nome deu problema, e a banda agora se chama somente “Devotos”. Me lembro de um livro do grande contista João Antonio, já falecido, e que tinha este título arrepiante: “Abraçado ao meu rancor”. Eu não sei que tipo de sentimentos levam os caras a botar títulos assim em seus livros, mas pressinto nisto um azinhavre da alma, um travo de dor e de amargura mal resolvida, um sofrimento tão entranhado que a única maneira de manter a cabeça erguida é orgulhar-se de sofrer. A frase de Braguinha, no entanto, sempre me aconselhou a gostar da vida... e a achar que sou correspondido.

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