segunda-feira, 6 de outubro de 2008

0575) Bezerra da Silva (21.1.2005)



Morreu o velho malandro Bezerra da Silva, e com ele um dos meus sonhos de compositor: ter uma música gravada por uma das figuras mais marrentas e mais divertidas da cena do samba carioca. Mandei um samba uma vez, ele não gravou, eu dei de ombros e pensei que na próxima tentativa teria mais sorte. A próxima tentativa agora vai ser “na Gulora”, como dizia minha mãe. Mas aí a concorrência vai ser fogo, vou disputar com João Nogueira, Beto Sem Braço, um monte de gente.

Sempre achei Bezerra da Silva o típico carioca de morro. Tinha aquela fala arrastada, uma entonação de voz que é uma mistura de cautela automática, empáfia-de-pequenino, ressentimento atávico, desdém pelo interlocutor, tudo revestido por aquela polidez formal que os faz tratar a gente na base do “aí, campeão, tudo bem?”, “olá, bacana, como é que tá a parada?”, esse tipo de coisa. Malandros mulatos que ao tratar com os brancos de classe média fazem questão de se comportar nos-conformes, mas sempre deixando claro que, mesmo no momento em que nos apertamos as mãos, existe um Oceano Atlântico de navios negreiros a nos separar.

Nunca o encontrei pessoalmente; soube que havia se tornado evangélico antes de morrer. Como diria um amigo meu, cínico até a medula, “Rapaz, esse negócio de ficar se aproximando do Céu é perigoso...” O mais engraçado é que só depois de muitos anos aqui no Rio foi que eu descobri que Bezerra era nordestino. Geraldo Azevedo me contou que quando ele e Alceu defenderam “Papagaio do Futuro” num Festival, Bezerra era o zabumbeiro do grupo. Mal acreditei, porque nada no sotaque e na atitude dele lembrava o Nordeste. A verdade é que Bezerra veio para o Rio com 15 anos, durante a II Guerra; era um menino, e desembarcou num Rio de Janeiro que ainda não tinha sido tomado de assalto por Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro. Foi o sucesso posterior de Jackson que o atraiu para a música, e aqui entra um detalhe que diferencia Bezerra de todos os outros, pois estudou violão clássico, e sabia ler partitura. Uma vez vi uma entrevista dele para a TV em seu apartamento, junto de um piano, e pensei: “Mas olha o inchirimento...” Não era inchirimento, era preparo, mesmo.

Bezerra foi o terceiro estágio da migração nordestina. O primeiro, com Gonzaga, era o retirante que só pensa na terra que deixou para trás. Quantas músicas há, de Gonzaga, celebrando o Rio? Pouquíssimas. O segundo estágio é Jackson, que já não é o nordestino do Sertão, mas o da Feira de São Cristóvão, com suingue urbano, vivência da indústria cultural (rádio, orquestra), perfeitamente integrado ao Rio. O terceiro é Bezerra, onde o miolo nordestino foi totalmente recoberto por uma capa espessa de carioquidade explícita e agressiva. Ao contrário dos outros dois, ele fala em bandidagem, em maconha, em assaltante, em revólver, em polícia. A gente só entende a relação Nordeste-Rio se entender a história dessas três gerações.

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