segunda-feira, 6 de outubro de 2008

0576) Harry Potter vs Tolkien (22.1.2005)


(J. R. R. Tolkien)

O sucesso das séries “Harry Potter” e “O Senhor dos Anéis” tem levado muita gente a colocar os dois no mesmo saco. Afinal de contas, são muitos os pontos que as duas obras têm em comum. Ambas são de autores britânicos, abordam um universo fantástico, têm um poderoso apelo junto aos jovens, vendem milhões de livros no mundo inteiro, deram origem a filmes que também tiveram enorme sucesso. Isto faz com que muita gente raciocine como certa vez vi alguém dizendo: “Está faltando quem faça literatura de boa qualidade, e isso cria um vácuo por onde acabam entrando essas coisas tipo Harry Potter, Senhor dos Anéis...”

Peço licença para discordar. Peguemos os livros de J. K. Rowling. Ela não é uma grande estilista, sua imaginação é vulnerável a clichês (mas só percebe isto quem lê muita Fantasia inglesa), e parece ter uma tendência a escrever de forma cada vez mais prolixa. Tirando isto, seus livros são excelentes aventuras para garotos na faixa dos 8 aos 14 anos (estou falando garotos europeus, pois nem todo garoto brasileiro de 8 anos lê um livro sem figuras daquele tamanho). Têm histórias bem imaginadas (dentro das convenções do gênero), um protagonista interessante. E têm um forte senso de finalidade: o leitor sabe que cada um dos sete livros previstos irá narrar um dos sete anos necessários para a formatura de Harry como feiticeiro na escola de Hogwarts. A própria Rowling, na TV, mostrou certa vez um caderno onde ela diz ter a sinopse de todos os livros. O final já existe. Todos esperam chegar lá um dia.

Harry Potter é um entretenimento agradável, que não faz mal nenhum a um garoto, pelo contrário, dá-lhe a bendita e inesquecível experiência de “ler um livro grosso até o fim”. Li apenas os dois primeiros, e não tenho nada contra.

O Senhor dos Anéis é outra história. Tolkien é um erudito, um estilista, um poeta, e um indivíduo de pensamento profundo, com idéias vastas e complexas sobre o mundo, e que escolheu o gênero da Fantasia Heróica para exprimir estas idéias. Compará-lo com J. K. Rowling é como comparar Ingmar Bergman com George Lucas. Tolkien é um autor do mesmo time de (no Brasil) Guimarães Rosa, Ariano Suassuna e Euclides da Cunha. Pertence a uma linhagem literária de enorme valorização da tradição, do nacionalismo, e da firme convicção de que o Mundo é um campo de batalha onde se defrontam o Bem e o Mal. Seu estilo é um tanto pesadão mas clássico; os poemas que ilustram seus romances são obras impecáveis. O mundo fantástico que criou não tem paralelo. Pode-se discordar dele, mas não negar sua estatura.

Rowling e Tolkien não surgem num vácuo de ausência de boa literatura. Surgem num contexto em que a literatura fantástica vem sendo reavaliada e recriada por escritores e leitores, bem à frente, com a crítica tentando alcançá-los pouco a pouco. O mais notável deste processo é que ele seja simbolizado por autores tão distantes e tão diferentes quanto estes dois.

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