Em João Pessoa está acontecendo uma retrospectiva da carreira de José Dumont. Quem me dera poder ver essa Mostra, cujos títulos ainda nem sei quais são. Por um lado, para rever os trabalhos do ator; por outro, porque é meio difícil você ver Dumont trabalhando num filme ruim. Ele tem, no cinema brasileiro, a glória meio ingrata de ser considerado “o nordestino típico”, assim como Antonio Pitanga e Milton Gonçalves foram por muito tempo “o negro típico”. Dumont tem uma espécie de estigma, segundo o qual ele só poderia interpretar personagens nordestinos, pobres, paus-de-arara.
Dizem que Orson Welles escolheu Anthony Perkins para o papel de Joseph K. em O Processo porque ele se parecia com Kafka. (Aliás, se olhar bem para as fotos dele, Kafka tinha uma cara de cearense danada.) Isto pode até ser compreensível quando se trata de filmes sobre personagens históricos cujas feições são conhecidas e marcantes. Nicole Kidman teve que inventar um nariz novo para fazer Virginia Woolf. Anthony Hopkins fez das tripas coração para ficar parecido com Nixon. Will Smith deve ter mandado bater muito bombo em terreiro para baixar o espírito de Muhammad Ali.
Ainda assim, essa história de papéis serem conferidos devido a semelhança física, ou “plausibilidade facial”, sempre me pareceu esquisita. Por que motivo um ator com o tipo físico de Dumont não poderia interpretar, digamos, um banqueiro, ou um ministro de Estado, ou um xeique saudita, ou um intelectual? Aliás, poucos atores seriam tão indicados para este último tipo, porque Dumont possui uma tensão concentrada de quem está pensando com toda força, o tempo todo, sem parar. Seus gestos tensos, seus olhos intensos, sua verbalização fluente e aparentemente incontrolável, tudo isto sugere um indivíduo com a mente em ebulição. É diferente de escalar certos atores globais de colete e cachimbo, manuseando um livro de Freud, e citando filósofos europeus.
Falei na verbalização de Dumont, e é notório no mundo do cinema o fato de que ele é um ator que traz material para o personagem, pensa o personagem, cria junto. Sua capacidade para o improviso já era conhecida desde O Homem que Virou Suco até Gaijin, e voltou a ser lembrada pela crítica no recente (e ótimo) Narradores de Javé. E quem no cinema brasileiro já interpretou o delírio intelectual, o delírio de uma mente possuída por uma idéia científica, com a intensidade impressa por Dumont no cientista louco de Kenoma, da mesma Eliane Caffé?
O rosto, o corpo, os olhos e a voz de Dumont são a cara do Nordeste, e não vejo nenhum papel, nordestino ou universal, que ele não pudesse interpretar. Se eu um dia filmasse o Romance da Pedra do Reino de Ariano Suassuna seria ele minha primeira opção para o papel de Quaderna. Ali está o Fogo: a intensidade quase assassina de um sonho impossível. E também o Riso: o que Suassuna chama “o desvio obsceno” e “a galhofa demoníaca”.
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