Alguns dias atrás (“O protagonista invisível”, 18 de novembro) comentei um curioso personagem de Hitchcock no filme Intriga Internacional: o agente secreto Kaplan, com o qual Cary Grant é confundido durante grande parte da trama, sofrendo seqüestros e tentativas de assassinato por parte de outros espiões. Só lá pela metade do filme Grant, que está no encalço do tal Kaplan, para saber por que motivo o confundem com ele, começa a interrogar os empregados do hotel onde ele se hospeda e descobre que na verdade nenhum deles o vira. A reserva é feita pelo telefone, a bagagem é remetida por alguém, as roupas são deixadas para lavar em cima da cama... mas ninguém jamais viu Mr. Kaplan em carne e osso. Pela simples razão de que ele não existe, é um personagem fictício criado pelo Serviço Secreto para... bom, vão ver o filme que vocês entendem.
Parece mirabolante? Não é tanto quanto a vida real. No começo de dezembro, um professor holandês confessou à imprensa que durante anos serviu de espião para o Ocidente junto à China comunista, fazendo-se passar pelo presidente de um Partido Comunista que simplesmente não existia. Pieter Boevé foi recrutado pelo serviço secreto holandês ainda muito jovem, após uma viagem à China para um desses encontros nacionais da juventude. O serviço secreto criou um fictício Partido Marxista-Leninista Holandês (MLPN) e Boeve durante doze anos atuou como presidente deste partido fantasma, fazendo repetidas visitas à China, onde era tratado com honrarias.
A farsa incluía a publicação de um jornal, De Kommunist, totalmente redigido pelo Serviço Secreto. Boevé, hoje com 76 anos, comenta que o MPLN foi o único partido radical totalmente forjado da História, e certamente o único que funcionou de fato. Boeve usava o nome-de-guerra de Chris Petersen, e o suposto partido gabava-se de ter 600 membros, mas o número real nunca passou de doze. Alguns eram comunistas sinceros que, como Paul Wartena, hoje professor da Universidade de Utrecht, doavam 20% de seus salários para a entidade. Wartena, após o desmascaramento público do MPLN, está exigindo que o Serviço Secreto holandês o reembolse.
Nada disto é estranho para quem leu 1984 de George Orwell (1949), onde uma célula comunista é criada pela polícia para atrair comunistas, ou O Homem que Era Quinta-Feira de G. K. Chesterton (1908) onde um policial infiltrado num grupo subversivos acaba descobrindo que todos os outros membros também pertencem à polícia. A história da espionagem é, para além do mero jogo político-ideológico e das atividades criminosas, uma das melhores alegorias para o caráter ilusório das atividades humanas. Como saber que alguém é o que diz ser? Como provar a alguém que somos o que dizemos ser? Como saber, dentro de nós mesmos, se somos de fato o que pensamos ser? A história da espionagem é talvez, reduzida aos seus termos mais simples, a mais metafísica das tramas policiais.
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