Traduzir é mais difícil do que escrever. Traduzir uma obra é criar numa língua um equivalente aceitável ao que foi dito em outra, a um texto já existente. Escrever é criar a partir do não-dito, de uma idéia com a qual só o autor tem contato.
Quando eu traduzo um texto de Shakespeare, estou diante do mesmo problema com que Shakespeare se deparou há 400 anos, o problema de expressar aquelas idéias em palavras. Ele tentava dizer aquilo em inglês, eu estou tentando dizer em português. Ele tinha um pouco mais de liberdade, porque estava produzindo um texto original, fiel apenas à idéia informe e difusa que se agitava em sua mente. Eu, no entanto, tenho que ser fiel a um texto inglês universalmente conhecido.
É neste sentido que é mais difícil traduzir do que escrever, e um tradutor de Shakespeare enfrenta problemas técnicos que Shakespeare não precisou enfrentar.
Paulo Rónai, um dos nossos maiores tradutores, costumava citar uma frase de Heine, segundo a qual “traduzir poesia é como empalhar raios de sol”. E comentava ele: “Mas, será que escrever poesia também não será a mesma coisa?”
A tradução poética é a mais difícil de todas, porque lida com a mais conotativa das linguagens. Dêem-me para traduzir um manual técnico da Microsoft ou um guia de trens britânico, mas não me dêem um poema, que é muito mais trabalhoso! (Estou brincando, claro. Mil vezes o poema.)
Ao traduzir poemas de forma fixa, temos que reproduzir uma série de elementos:
1) a estrofe;
2) o esquema de rimas;
3) o ritmo silábico no interior de cada verso;
4) a sonoridade dos fonemas;
5) o conteúdo do texto.
É coisa demais para se transpor, e há de haver uma perda em algum desses departamentos. Um dos nossos melhores tradutores de poesia, Augusto de Campos, se destaca justamente pelo fato de procurar sempre atender a todos estes requisitos ao mesmo tempo, e de geralmente conseguir um nível impressionante de aproximação em todos eles.
Mas em geral é preciso decidir: reproduzo as idéias do poema original, ou a sua bela alternância de sílabas fortes e fracas, e de palavras que rimam no meio e no fim dos versos?
Parece muito com aquele problema da Física, o de definir uma partícula em função de sua velocidade e de sua posição. Para medir a velocidade, temos que observar seu deslocamento e abrir mão de saber sua posição exata. Se queremos saber sua posição exata num dado momento, é preciso “fechar” a observação nesse momento, mas aí não podemos saber a que velocidade ela estava se deslocando.
Na tradução de poesia, cada vez que queremos reproduzir o sentido dos versos temos que sacrificar os detalhes rítmicos e melódicos com que o poeta se exprimiu originalmente. E quando ”fechamos” a nossa atenção para reconstruir em português essas minúcias, é possível que o sentido comece a se dissipar.
Traduzir é perder. A arte consiste em trabalhar simultaneamente em todas essas frentes, e tentar perder o mínimo possível em cada uma delas.
2 comentários:
Não entendo nada de tradução, mas me parece que o ideal é manter a musicalidade. Toda poesia tem uma ritmo e considero essa musicalidade essencial pra beleza das poesias em geral.
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