(Cole Porter)
Sempre acreditei que o momento da criação artística (tanto quanto o momento da criação científica, visto que os dois são essencialmente a mesma coisa) é um estado alterado de consciência, um momento de epifania em que todos os interesses de ordem prática recuam para segundo plano, e a mente focaliza-se com toda sua energia naquela idéia que está brotando e desenvolvendo-se. São momentos raros, decerto. A maior parte da criação artística é pedestre, sofrida, e não se compara ao vôo de uma águia, e sim a um hipopótamo escalando uma montanha. Mas sempre me impressionou o fato de Augusto dos Anjos ter composto em seus últimos dias, febril, delirante, invadido pela pneumonia, um dos seus sonetos mais belos, “O último número”: “Hora da minha morte. Hirta, ao meu lado, a idéia estertorava-se...” Sim, mas mesmo estertorando-se compunha um poema de inquietante simbolismo filosófico – o conceito de Último Número é notável, ainda mais numa época em que poesia e matemática eram consideradas coisas incompatíveis.
Um artigo recente de John Lahr na revista The New Yorker comenta um episódio curioso na vida do compositor Cole Porter. Aos 46 anos Porter estava andando a cavalo num clube quando o cavalo tropeçou e caiu sobre ele, quebrando-lhe as pernas. Este acidente mudou a vida do compositor, que passou por numerosas cirurgias e nunca se recuperou totalmente, sendo forçado a usar muletas até sua morte, muitos anos depois. Sobre este episódio, Porter afirmava (e o seu biógrafo William McBrien achava difícil acreditar) que durante as seis horas em que ficou caído, esperando socorro, ficou trabalhando mentalmente numa das estrofes de uma canção que compunha na época, “At Long Last Love” (“O amor, até que enfim”). Os versos dizem: “Is it an earthquake or simply a shock? / Is it the good turtle soup or merely the mock? / Is it a cocktail, this feeling of joy? / Or is what I feel the real McCoy?” (“Será um terremoto, ou apenas um choque? É uma sopa-de-tartaruga legítima, ou uma falsa? Será que é só um coquetel, esta sensação de felicidade? Ou isto que eu estou sentindo é a-coisa-pra-valer?”).
Talvez num estado de tensão extrema a mente busque energias onde parecia não as ter; talvez o desespero, a dor física, desencadeiem no cérebro alguma compensação química que uma mente criativa seja capaz de utilizar como combustível para a criação. Em todo caso, o que é admirável é a decisão de criar, a decisão de, mesmo diante da morte certa (caso de Augusto) ou possível (caso de Cole Porter), concentrar o que resta de energia na composição de versos que, sem dúvida, já vinham sendo ruminados e planejados pelo poeta há algum tempo, como é habitual na criação literária. O momento de criar é uma epifania, um momento de iluminação íntima, um momento revelatório. O fato de versos serem produzidos em circunstâncias tão adversas não são um contra-senso: ele demonstra por A + B a excepcionalidade do momento da criação.
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Um comentário:
Realmente interessante. Não sabia de nenhum dos dois casos.
Hmmm, não sei. Eu acredito que possa haver um pouco de cada possibilidade: há muitos casos em que a criação vem através de uma epifania; mas creio que também há criações que surgem através de muito suor. Como você mesmo disse, como um hipopótamo escalando uma montanha.
Talvez as criações mais chocantes tenham surgido de epifanias. Mas há sempre os Thomas Edison, que batalham incessantemente para obter a sua criação.
Contudo, nunca tinha atentado para esse momento de grande preocupação (morte chegando, etc.) pudesse talvez facilitar a ocorrência de epifanias. Talvez seja um caso de abrir mais as nossas mentes para que as epifanias ocorram mais frequentemente. E quando estamos à beira da morte, muitas vezes nos resignamos, e de repente a mente se abre.
Bom, já delirei demais.
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