Saiu pela editora gaúcha L&PM uma bela reedição do livro As palavras andantes, do uruguaio Eduardo Galeano. É um livro que tenho há anos e nunca tive a intenção de devorar do começo ao fim: é livro para abrir e ler ao acaso. É uma espécie de almanaque, composto de pequenos textos, às vezes com quatro ou cinco linhas apenas, historietas, anedotas poéticas, contos recolhidos ou inventados por Galeano em suas andanças pela América Latina. Contos com títulos que lembram os nossos folhetos de cordel: “História do Lagarto que Devorava suas Esposas”, “História do Homem que queria Engravidar”, “História do Povo da Lua”, “História do Vaqueiro que era uma Onça”...
A comparação com o cordel não é gratuita. Para tornar o livro parecido com um almanaque de cordelista, Galeano encomendou as ilustrações a J. Borges, o grande xilógrafo pernambucano, um dos maiores cordelistas e xilogravadores vivos e em atividade. As ilustrações de Borges, com sua enganadora simplicidade, parecem agarrar os textos de Galeano e elevá-los a um plano mítico, para além do meramente literário. Textos que poderiam ser apenas jocosos, ou românticos, ou sentenciosos, ficam contaminados de magia pela presença dessas xilogravuras de pássaros coroados, esqueletos cercados de morcegos, animais que se entredevoram, serpentes com asas ou com cabeça humana, diabos lutando de peixeira, fotógrafos lambe-lambe, pastores, marceneiros, mosquitos tocando tambor, esferas superpostas de céus cravejados de estrelas.
Galeano é o autor de um dos livros que mais abalaram minha fé na humanidade. As veias abertas da América Latina, que li em 1978 em edição da Paz & Terra, botou abaixo todas as minhas ilusões de que bastaria derrubar a ditadura militar brasileira e todos os nossos problemas estariam resolvidos. OK, OK – nunca acreditei que isso resolveria “todos” os nossos problemas, mas juro que pensei que resolveria os mais graves deles. Ledo engano. Não mudou nada. Como não sou muito dado à aridez das leituras econômicas e geopolíticas, foi preciso a prosa incendiária, visionária e transfiguradora de Galeano para me levar nessa viagem pela exploração dos países latino-americanos. Entendi tudo. A América Latina é um Prometeu atado à rocha, condenado pelos deuses da História a ser devorado vivo pelo abutre da exploração econômica.
Esta minha teoria atual pode ser tão despropositada quanto a anterior; mas onde quero chegar é que se As veias abertas... me dão motivos para achar que o mundo não tem jeito, As palavras andantes me fazem recuperar a fé na América Latina (este “nordeste” do nosso continente) como um organismo mais resistente do que as pulgas que dele se alimentam. Nosso continente é uma pirâmide soterrada, da qual só emerge do chão, como numa história do Barão de Münchausen, uma laje de pedra com uma porta em forma de livro. Basta abri-la... e deuses xilografados voltarão a habitar entre nós.
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