quinta-feira, 8 de maio de 2008

0386) Amigo é pressas coisas (15.6.2004)





(A Gang Selvagem com Sundance Kid (primeiro sentado, à esquerda) e Butch Cassidy (último sentado, à direita).



Dias atrás cometi uma blasfêmia, falando mal da Liberdade (“O fantasma da liberdade”, 27 de abril). Hoje, atacarei outra vaca sagrada: a Amizade. Tenho dezenas de amigos, gosto muito de todos, e espero não ofender nenhum deles ao afirmar que um dos maiores males do Brasil é a amizade. Este é um dos valores morais sobre os quais se alicerça a nossa cultura e esta maneira de ser que tanto encanta os estrangeiros, mas onde se apóia também toda a rede de corrupções, trambiques, maracutaias, negociatas, golpes, e todas as “tenebrosas transações” de que falava o poeta.

Vejam nos jornais, na TV. Está tudo lá, nos depoimentos, nos telefonemas grampeados, nos bilhetinhos, nos papos a meia-voz registrados pelas microcâmeras ocultas. “Aos amigos, tudo” – é o lema que impera nos corredores do Poder público e privado. 

Se aos políticos é vedada a nomeação de parentes para cargos públicos, este conceito deveria, talvez, ser ampliado para incluir também os amigos. Afinal, muitas vezes um político deixa de lado um irmão antipático ou um primo pouco confiável, e prefere instalar no ponto-chave da máquina estatal aquele companheirão dos velhos tempos, cuja amizade é à prova de fogo. 

(Se bem que nunca se sabe. Assim como se diz que a fidelidade feminina é solúvel no álcool, muitas lealdades masculinas não resistem ao peso dos zeros e dos cifrões.)

Os “vampiros” da Máfia do Sangue só fazem o que fazem porque estão cercados de amigos. Amigos às vezes honestos e bem intencionados, e são essas boas intenções que os perdem. “Ih, rapaz, o Lalau desta vez extrapolou... Mas não vou abandonar um amigo numa hora como essa! Vou destruir as provas e jurar na Bíblia que não sei de nada.”

Num ensaio de 1946 (“Nosso pobre individualismo”, em Outras inquisições), Jorge Luís Borges comenta o abismo ético existente entre a moral anglo-saxônica proposta pelo cinema americano e a ética do compadrismo cultivada pelos argentinos. Diz ele que o argentino só acredita em relações pessoais. Como o Estado é uma entidade abstrata, ele não crê em sua existência, e não acha que seja um crime roubar dinheiro público. E exemplifica: 

“Os filmes elaborados em Hollywood propõem repetidamente à nossa admiração o caso de um homem (geralmente um jornalista) que conquista a amizade de um criminoso para entregá-lo depois à Polícia. O argentino, para quem a amizade é uma paixão e a Polícia uma máfia, sente que este herói é um incompreensível canalha.”


Este exemplo cristalino comprova minha tese sobre a brasilidade dos argentinos, ou a nossa própria argentinidade. Achamo-nos devedores de favores e lealdade aos nossos amigos, não a essa abstração chamada Brasil. Nosso “contrato social” é no interior de um clã. De uma família ampliada; de uma tribo; de um clube de pessoas unidas por projetos coletivos de ascensão social e de desfrute das boas coisas da vida. O navio é este convés onde tomamos drinques ao sol; o resto pode afundar, tamos nem aí.





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