quinta-feira, 27 de março de 2008

0305) O ananás de ferro (12.3.2004)




Quando eu era pequeno passava as férias em Recife, na casa de minha avó paterna, Vó Clotilde, uma velhinha muito esperta, parecida com Agatha Christie. Tão parecida que foi ela mesma quem me aplicou a obra da Dama do Crime. Aos 10 anos li O caso dos 10 negrinhos, para descontentamento de minha mãe quando descobriu que Vó tinha me dado um livro tão maquiavélico. Bobagem: pouco depois ela própria estava com a cara enfiada no livro, e achando o máximo. Todas as minhas leituras dessa época foram edificantes, mas poucas o terão sido tanto quanto um conto desconhecido de um autor obscuro, numa antologia chamada “Os Mais Belos Contos Alucinantes” (que garoto resiste a um título assim?)

O conto era “O ananás de ferro” de Eden Philpotts, e tenho uma teoria pessoal de que foi ele quem inspirou a Jorge Luís Borges a obra-prima “O Zahir”, a história do objeto inesquecível, o objeto que ocupa a mente de alguém e não pode mais ser desalojado dali. Borges certamente leu este conto, pois em seus ensaios elogia o romance mais famoso de Philpotts (The Red Redmaynes, de 1922), e publicou conto seu na antologia Los Mejores Cuentos Policiales (2a. série, 1951). Naquele conto, o protagonista é um sujeito meio obsessivo, que se deixa facilmente dominar por idéias fixas. Um dia ele avista, na cerca de ferro de uma propriedade próxima, uma fileira de ananases de ferro que servem de adorno. E ele fica obcecado por um deles. São vários, e todos iguais; mas o que o fascina é o terceiro do lado norte do gradil. Por que? Ele não sabe. Só sabe que aquele objeto insignificante tornou-se a coisa mais importante de sua vida.

Diz ele: “Pensava nele como um ser sensível; considerava-o uma criatura que podia sentir, sofrer e compreender. Nas noites úmidas imaginava que o ananás de ferro devia sentir frio; nos dias de calor receava que ele estivesse sofrendo com o sol de verão! Da comodidade e conforto de minha cama, imaginava-o acorrentado ao seu pedestal solitário no meio da escuridão. Quando caía uma trovoada, tinha medo que um raio atingisse o ananás de ferro e o destruísse para sempre.”

O conto tem um desfecho banal (um crime é cometido), mas o seu valor está em registrar esta curiosa emoção humana chamada paixão. Quando nos apaixonamos por outra pessoa, justificamos esta paixão com uma porção de explicações lógicas (identificação de espíritos, atração sexual, admiração recíproca, auto-estima social, etc.), como se tudo isto fosse a “causa” da paixão. Quando nos apaixonamos por um ananás de ferro é que percebemos, sem o adorno dessas racionalizações “a posteriori”, o quanto a paixão não tem causas racionais. É absurda e ao mesmo tempo revestida de uma lógica inflexível; gratuita, e ao mesmo tempo auto-justificada. Nossa alma está inexplicavelmente acorrentada àquele ser onipresente. Não o entendemos e não o esperávamos, mas esse obscuro objeto de desejo transformou-se na coisa mais importante de nossa vida.

2 comentários:

JS disse...

Não sei se foi omissão deliberada (maldita lauda limitadora) ou um sopro do inconsciente. Li por acaso que quem incentivou Agatha Christie a escrever foi... Eden Philpotts. Uncanning, não?

Braulio Tavares disse...

É isso mesmo. A culpa é da lauda limitadora, com um máximo de 3 mil toques. Philpotts era bastante famoso em vida, e incentivou Agatha Christie, jovem escritora principiante. Mal sabia ele que ela se tornaria a autora mais traduzida depois de Shakespeare, e que ele próprio sumiria do mapa da Literatura.