Entre o “texto
literário produzido por uma Inteligência Artificial” e o “texto literário produzido por uma pessoa”
existe um parentesco indiscutível, e ao mesmo tempo uma distância abissal.
Ainda não sei qual dos dois é maior, se o parentesco, se a distância.
Um está para o outro assim como uma salsicha está para um
bife.
Minha impressão é que o texto da I. A. (Inteligência
Artificial) obedece aos mesmos princípios produtivos da acumulação de carnes de
toda natureza, que são moídas, homogeneizadas e embutidas em formatos-padrão,
por meios puramente mecânicos. A interferência humana vai somente na linha da
criação e eventual supervisão desse processo. Uma vez posto em movimento, o
processo procede por si só.
Muita gente prefere negar a existência da Inteligência
Artificial. Ou melhor: negar-lhe o direito à existência, na esperança de que
diante de muitas negativas as empresas que investiram centenas de bilhões de
dólares nessa tecnologia fechem as portas e peçam desculpas.
Como se diz na Paraíba: “cochila!...”.
“Cochila!” quer dizer “perca as esperanças!”, mas duvido
que alguma I. A. saiba disso. Dificilmente terá pirateado algum texto onde essa
expressão apareça.
Minha resistência pessoal à I. A. é pela sua incapacidade
robótica de distinguir, entre os hectares de texto que consulta em fração de
segundo, entre Baden Powell, o fundador do escotismo, e Baden Powell, o
violonista dos “afro-sambas”.
Amigos meus já consultaram o Chat GPT a meu respeito e
obtiveram a resposta de que nasci no Rio de Janeiro em 1965, e sou autor de
meia dúzia de livros cujos títulos li de cima a baixo e nunca vi mais gordos.
Quem pode confiar numa engenhoca tão incompetente?!
O pior é que quando dizemos “você está errado” o
robozinho abre um sorriso parvo e diz: “Peço desculpas! De fato eu estava
errado na minha resposta.” E fica por isso mesmo. Ainda bem que é consulta
sobre literatura! Se fosse consulta médica (como tem muita gente fazendo) o
paciente já estaria rumo ao crematório.
A I. A. é um mero processo estatístico de cortar-e-colar
textos alheios baseando-se em índices de probabilidade, mas é um processo meramente
mecânico. Não existe uma inteligência por
trás. Não existe uma mente humana (ou um conjunto delas) olhando,
interpretando, avaliando, decidindo. Existe uma impressão de presença humana, muito espertamente preparada por quem
manipula esses algoritmos. Mas ela é tão humana quanto aquelas gravações dos
saites das empresas, aquelas aveludadas vozes femininas que nos dizem: “Por
favor, permaneça na linha! Sua ligação é muito importante para nós!”. Você acha
que ela está sendo sincera?...
Ferramentas desse tipo não parecem com uma inteligência
criando; são um mero desenvolvimento dos corretores ortográficos que ficam nos
sugerindo a complementação de palavras. Quando numa caixa-de-diálogo eu digito
“BRA...”, ele me sugere “Brasil”, “Braulio”, “Brasa”... Ele pesquisa em fração
de segundo quais as palavras que mais frequentemente foram escritas por quem
digitou essas três letras iniciais, e pergunta: “É isso aqui que você está
querendo dizer?”
Corretores ortográficos dessa natureza têm uma orientação
estatística. Tendem a sugerir as palavras que aparecem com maior frequência. E
no caso dos geradores de texto tendem a sugerir as frases que aparecem com mais
frequência nas centenas de milhões de páginas que acumulam nos seus arquivos.
(Aqui entraria uma digressão interminável sobre a
legitimidade ou não do uso desses milhões de páginas sem autorização dos
autores; mas esta é outra discussão. Eu,
que sou autor, considero isto um roubo, aquilo que a gente chama “tomar na
mão-grande”. Há milhares de ações correndo na Justiça, no mundo inteiro, mas
não sou otimista quanto ao resultado. Tem muito dinheiro pesando no lado de lá
da balança.)
O uso dos ChatGPTs e similares me lembra a anedota que se
conta sobre Horace Gold (1914-1996), o antigo editor da revista Galaxy, uma das principais publicações
de ficção científica dos anos 1950-60. Diz-se que Gold, um reescrevedor
incansável dos contos alheios que publicava, era capaz de transformar uma
história medíocre numa história boa, e uma obra-prima numa história boa. Ele
medianizava tudo.
Um artigo de Kyle Chayka no The New Yorker, “A. I. Is Homogenizing Our Thoughts”, comenta assim
os “Modelos de Linguagem em Larga Escala” (LLMs, Large Language Models):
A Inteligência Artificial é uma tecnologia das frequências médias. Os Modelos
de Linguagem em Larga Escala (LLMs) são treinados para detectar a ocorrência de
padrões dentro de imensos volumes de dados; as respostas que encontram têm
portanto uma tendência para o consenso, tanto na qualidade da escrita, que é
repleta de clichês e banalidades, quanto no calibre das idéias.
É uma reiteração do mais frequente, do que foi utilizado
mais vezes e com isto demonstra o quanto é útil.
É útil mesmo? Sem
dúvida. Se eu quiser redigir uma “Carta de Anuência” confirmando minha
participação num projeto, basta fornecer à I. A. os dados do projeto e ela
redige para mim esse texto que tem forçosamente que ser reto, enxuto,
padronizado, sem nuances, sem lugar para dúvidas.
Se eu precisar de um contrato de locação de imóvel, de
uma autorização para viagem de um menor de idade, de um relatório de viagem de
trabalho, é só fornecer os dados em-bruto e o programa organiza tudo,
bonitinho, com um texto enxuto e esclarecedor. (Ou pelo menos é esta a esperança
de quem usa.)
Por esse motivo os usos principais dos LLMs, ao que se
diz, estão nas atividades ligadas a Tecnologia, Negócios, Direito, Comércio
etc. – onde a produção de textos não visa a originalidade, mas a clareza /
objetividade / eficiência / etc.
Nessas áreas, pelas estatísticas que vi circulando por
aí, o uso de Inteligência Artificial chega a 75%; curiosamente (ou talvez não)
na área da Literatura ocorre uma das menores percentagens de uso da I. A. Penso eu: “É claro, porque a literatura,
embora tenha seus usos para clareza e objetividade, lida também, e muito, com a
polissemia, a ambiguidade, a elipse, a metáfora, ou seja, usos subjetivos da
linguagem”.

A questão é que dentro da área da Literatura, mesmo sendo
uma das menores percentagens, ela chega a 40%. É muito. É muita literatura
mediana sendo produzida, mas... Vamos pegar o feijão-com-arroz literário de dez
anos atrás, de trinta anos, de cinquenta anos atrás. Não estarão ali, com
frequência aterradora, e como consequência apenas
de escolhas humanas, os mesmos clichês, as mesmas expressões consagradas,
as mesmas idéias cediças, os mesmos lugares-comuns ideológicos, as mesmas
opiniões padronizadas que circulam numa população ansiosa por aceitação,
acolhida, reconhecimento sem muita polêmica?
A I. A. não inventou o texto-salsicha, apenas turbinou
sua produção.
O algoritmo das Inteligências Artificiais é de uma
natureza específica, mas as escolhas humanas têm também o seu algoritmo, se as
observarmos numa escala de milhões de exemplos. Somos mais estatísticos do que
imaginamos. Nossas “opiniões pessoais” são mais coletivas do que gostaríamos de
admitir. A Inteligência Artificial está surgindo, talvez, para nos dar uma
sacudida. Quando percebemos o quanto ela na verdade é burra e cega, percebemos também
o quanto, ao longo dos séculos, nossa mente humana coletiva também tem sido
cega e burra.
(Em breve: um
artigo em defesa da I.A.)