quinta-feira, 25 de dezembro de 2025

5214) Chico Pereira, 1944-2025 (25.12.2025)



 
Um mundo sem Chico Pereira vai ser um mundo muito sem graça, mas teremos que nos acostumar. Como diz o mote dos cantadores: “Faz pena, mas é o jeito”. Paciência. A vida da gente é uma corda de violão, e a cada ano o tempo dá mais uma volta na tarraxa. Vamos aproveitar a música, enquanto música vai havendo. 
 
Para quem não sabe quem foi ele (o Brasil é grande), Chico foi um artista plástico, professor e gestor de cultura que atuou principalmente entre Campina Grande e João Pessoa. Era de uma geração ligeiramente anterior à minha, o que fez dele uma espécie de irmão mais velho que botava o braço no ombro da gente e nos empurrava para realizar coisas. E que, conforme o momento, recebia a gente, escutava um projeto sem-pé-nem-cabeça qualquer, e dizia: “Essa idéia é completamente maluca. Bora fazer.” 
 
“Bora fazer” era uma espécie de fórmula mágica que Chico impôs no tempo de sua gestão no Museu de Arte Assis Chateaubriand, da FURNe (a Fundação Universidade Regional do Nordeste foi a primeira encarnação da entidade que hoje é a Universidade Estadual da Paraíba). 



 
O Museu, criado em 1967, começou sob a égide de Raul Córdula Filho; em 1969, passou para a direção de Chico. Eram os jovens no poder, finalmente! Sinal verde para tentar alguma coisa que não tinha sido tentada até então. Essa atitude foi seguida com a mesma descontração por José Umbelino Brasil, que o sucedeu no cargo em 1974.  
 
Já escrevi textos para várias exposições de Chico. Talvez o meu primeiro texto sobre ficção científica tenha sido o que fiz para a exposição dele Paisagens de Lithium (em 1975?...), mistura de colagem+pintura onde ele imaginava paisagens de um planeta fabuloso. 
 
Ele e seu irmão Lula Pereira (hoje um carioca-adotivo como eu) eram aficionados da Colecção Argonauta. Eu era da geração de Lula e, aos 16 anos, olhava Chico à distância, como se estivesse olhando um Antonio Dias ou um João Câmara. O primeiro impacto me veio dos trabalhos da Equipe 3 (Chico + Eládio Barbosa + Anacleto Elói), um coletivo que trabalhava a seis mãos numa tela, superpondo colagem, bico-de-pena, aquarela, guache e o mais que houvesse à mão. 
 
Para evocar aquela época, só me vem à memória um comentário de Glauber Rocha a um entrevistador francês, dizendo que na geração dele todo mundo lia de tudo, assistia tudo, e todo mundo era ao mesmo tempo marxista, futurista, freudiano, anarquista, surrealista, tropicalista e tudo o mais. 



(sede do Museu de Arte, na gestão Chico Pereira)
 

Graças a Chico, principalmente, formou-se entre fins dos anos 1960 e começo dos 1970 a chamada “turma do Museu” que incluía artistas jovens, com menos de 20 anos, participando de suas primeiras mostras, gente como o fotógrafo Roberto Coura e o artista Luís Barroso. 
 
“Quem gosta de passado é museu.” Este é um ditado popular da Paraíba, que aplicamos a tudo, desde o futebol à política. É um cacoete dos jovens, esse dar-de-ombros diante de referências ao Passado. Por que será? Eu já fui assim, e quando reabro essa cicatriz percebo que a novidade é algo infectuoso, algo que nos atrai e nos contamina. Quem é novo gosta do que é novo, porque quando temos vinte anos sentimo-nos como que herdeiros do mundo, e achamos que tudo que é novo veio para ficar. 




Quem gosta de passado é museu! Lá pelos anos 1970, o Museu de Arte patrocinou e hospedou um “Colóquio dos Museus Brasileiros” (não sei se o nome era exatamente este) que trouxe a Campina Grande uma caravana de gente vinda do Brasil inteiro, com uma série de palestras, mesas-redondas e entrevistas que (falo por mim) mudaram inteiramente o conceito do que é um museu, do que é novo ou velho, do que é passado ou presente.
 
Numa discussão remota travada nessa época, estávamos, uma meia-dúzia, sentados nas vastas poltronas do gabinete de Chico, discutindo projetos mirabolantes. Que tal uma exposição temática de artistas nordestinos? Que tal um festival do cinema francês? Que tal um ciclo de saraus poéticos, com recitais? Algum de nós disse: “Chico, pra você tudo parece fácil, porque você tem um cargo.” E ele: “Mas não é um cargo!  É um instrumento!  Não é uma obrigação! É uma possibilidade!”. 




A cabeça de Chico tinha várias vertentes quando virava o “artista criador”. 
 
Primeiro, uma curiosidade insaciável de tudo observar, conhecer, praticar, aplicar. Segundo, um amor quase infantil, pré-intelecto, pela imagem, pelo signo visual, algo que os profissionais do palavrório, como eu, podem apenas imitar à distância e tentar não esquecer. 
 
Terceiro, o respeito inegociável pela técnica, pela habilidade fazedora, pelo craft, uma seriedade típica de quem fez curso técnico na juventude. Quarto, aquela capacidade do artista Pop para ligar pontos distantes, reciclar temas e motivos, detectar tendências recém-nascidas, sentir para onde sopram os ventos das modas e das anti-modas; captar “o espírito do tempo”, como dizia Edgar Morin. 
 
Definir o que é Arte Pop é um pouco como preparar um sanduíche. Entre aquelas duas fatias de pão, cada um bota o recheio que quiser. Aqui vão meus dois tostões: Arte Pop é tudo que é vinculado à produção em massa, é disparado sobre o mundo como um despejo de espingarda de chumbo miúdo, e, atingindo aleatoriamente uma amostragem-humana qualquer, começa a ser revisto, reescrito, reinterpretado, recriado. Esse prefixo “re—“ é importante, porque na Arte Pop, ao contrário das cópias xerox ou das fitas cassete, uma reprodução pode ser mais densa e mais significativa do que a cópia de onde foi copiada. 
 
Fui remexer textos antigos em busca de conforto, achei este aqui, que fiz para a exposição Conexões Desconexas, que Chico fez em 2012 na Usina Energisa (em João Pessoa). Não tive como não dar uma risada. 
 
Chico Pereira conta aos amigos que na noite de abertura de sua exposição Conexões Desconexas ele levou para lá os filhos pequenos, que se divertiram muito com os convidados, as obras de arte, o coquetel, o ambiente festivo.  No dia seguinte, ele perguntou à sua filha de seis anos qual a coisa que ela tinha gostado mais na exposição, e ela respondeu: “As empadinhas”.  É uma resposta pop, uma resposta de quem percebe intuitivamente que a Arte não é apenas a obra de arte pregada à parede, mas todo o aparato que a produz e a cerca.  Arte sem empadinhas é como o cão de João Cabral sem plumas ou o rio de Guimarães Rosa sem terceira margem. 
 
E lá se foi Chico, aos oitenta e um anos. É como dizia um sábio japonês: quando um vulcão se extingue perdemos o fogo, mas ganhamos uma montanha para ver a paisagem. 
 
Falamos pelo telefone pela última vez semanas atrás, pelo celular de uma amiga em comum, que me deu a notícia de que ele estava de cama, pós-cirurgia. Uma ligação meio cortada, com sinal ruim; a voz estava cansada mas risonha. É a vida, amigo velho. Cansados, estamos todos. Risonhos, também. Sempre.  




 
Número especial do Correio das Artes:
https://auniao.pb.gov.br/servicos/correio-das-artes/edicao-digital-2024/correio-das-artes-dezembro-2024-1.pdf
 
Página de Evandro "Druzz" Nóbrega sobre Chico e o livro “Paraíba – Memória Cultural”:
https://druzz.blogspot.com/2012/05/uma-obra-imperdivel-de-chico-pereira.html
 
 




terça-feira, 23 de dezembro de 2025

5213) Natal 2025 (23.12.2025)




 (by Saul Steinberg) 


... e a Terra dança seu “Danúbio Azul” 
em torno ao Sol, girando em rodopio, 
ano vai, ano vem, tecendo um fio
de memórias que levarei comigo
na neblina final para onde sigo
e onde a música toca das esferas.
Era uma vez... era outra vez... e as eras
tornam-se um ser rimado e recorrente
encorpando o novelo do presente
no acalanto de um som que se repete. 
 
Mas no Sertão só chove canivete!
“Fé seca,” (disse alguém), “faca molhada”.
Tem uma cruz em cada encruzilhada
e um rosário de flores ressequidas.
Neste game, nos sobram zero vidas,
num cenário de tolerância zero.
Foi tanto jogo que eu burnei no Nero,
tanto CD queimado na madruga,
escape virtual, rota de fuga,
utopias de um mundo ao meu comando... 
 
Por isso leio, escrevo, e ardo, e ando,
pisando os pixels da Realidade.
Um Sertão feito em bytes. E a cidade
reduzida a geléia de algoritmos...
Quem nos salva? O Deus Pan. Tambor de ritmos,
flauta de esgotos, lira paulistana,
viola enluarada, sambaiana,
partido-alto ao som de uns 8-baixos,
frevo-jazz sacudindo os populachos,
cambalhota feliz dos corpos livres... 
 
E assim eu lanço ao mar meus bateaux ivres,
em busca aos arquipélagos do espaço
(e aqui na veia o sangue marca o passo
ao som sempre feliz de um Vassourinha).
A música é de todos. E é só minha
na hora em que me deixo possuir
e a melodia rege o meu sentir
e a levada me leva e traz de volta
e o bombo ora me agarra ora me solta
e eu penso apenas: “sei dançar ainda”. 
 
Tudo é Bahia, quando eu danço; e Olinda,
tudo é Suvaco, é Circo Voador,
roda-de-samba à Rua do Ouvidor,
Parque do Povo em coco de Biliu...
Canta, pedra do chão. Canta, Brasil.
Diz por quem dobram os teus jingle-bells,
para quem crescem teus arranha-céus,
para onde vai a Nau dos Insensatos
com seus porões de moscas e de ratos
à procura de um novo continente... 
 
Toca então teu Natal, harpa plangente,
e que algum deus dedilhe os teus bordões
como a agulha à espiral extrai canções
no milagre high-tech da vitrola...
Que venha o vinho, espume a Coca-Cola,
vamos brindar, beber, dançar cantando,
e que este cheiro de batata-assando
seja apenas detalhe culinário...
É Natal!... Que se dane o calendário,
que se dane a contagem regressiva! 
 
Quero sentir o mundo em carne viva,
em nervo exposto, em fio descoberto...
Quero ser Odisseu: ligado, esperto,
o que no mais aceso desta luta
“delibera, depois quer, e executa”,
como dizia Augusto no Pau d’Arco...
Quero poder curvar meu próprio arco
e que as setas disparem-se sozinhas
tal qual vão se ordenando estas dez linhas
sobre o alvo das páginas em branco. 
 
O ano acaba... e busco outro ao banco
que nos empresta sonhos e futuros
e os cobrará quem sabe com que juros
mas tanto faz; vem tudo no contrato.
Eis o vinho na taça, o pão no prato,
no rosto o riso, uma canção no peito,
e o peito aberto, e o que vier, aceito...
É Natal! – e lá fora ergue-se um canto,
“abro as janelas, pálido de espanto”,
e escuto a Lua me cantando um blue... 
 






 
 





sexta-feira, 19 de dezembro de 2025

5212) "Nouvelle Vague" (19.12.2025)


 
 
Este simpático e devotado filme de Richard Linklater procura reconstituir, ou mitologizar, a criação do filme Acossado (“A Bout de Souffle”, 1959), de Jean-Luc Godard, um dos desencadeadores da “nova onda” do cinema francês, não por acaso um dos meus movimentos cinematográficos preferidos.
 
Preferidos por quê? Primeiro, porque a Nouvelle Vague era novinha mesmo quando comecei a me interessar por ela, sete ou oito anos depois de Godard lançar este filme fundador e demolidor. 

Em Campina Grande, era difícil ter acesso a esses filmes. Eram distribuídos no Nordeste pela Franco-Brasileira, que tinha algum problema de contrato com as duas principais redes exibidoras da Paraíba (Luciano Wanderley, dos cinemas Capitólio/CG e Municipal/JP; e Cinemas Reunidos, dos cinemas Babilônia/CG e Plaza/JP). Às vezes, os filmes vinham. Outras vezes, tínhamos que pegar o ônibus, viajar 4 horas e ver os filmes no Recife. Era mais caro, mas era mais divertido.
 
Meus primeiros godards foram Masculino Feminino (1966) e Alphaville (1965), e talvez sejam (por isso mesmo) meus preferidos.
 
O próprio Acossado eu só vim assistir anos depois, quando morei na Bahia. Mas... e daí? Um dos traços revolucionários da Nouvelle Vague é ter sido um movimento onde os cineastas eram ex-críticos. Foi A Revolução dos Críticos (no caso, os que escreviam na parisiense Cahiers du Cinéma), que se transformaram em diretores e tomaram as rédeas do Poder.
 
Numa revolução assim, livros e artigos na imprensa são tão importantes quanto os filmes em si; e isto não nos faltava. Godard, Truffaut, Chabrol, Rivette, Resnais, eram os cineastas jovens em cujos textos, citados, comentados, transcritos, traduzidos, revelava-se também um cinema francês passado que para nós era tão inédito quanto o deles: o cinema de Jean Vigo, Jean Renoir, Robert Bresson...



 
Um livro que para mim foi crucial foi a coletânea Jean-Luc Godard, ed. Haroldo Barbosa (Rio: Gráfica Record Editora, 1968). São longas discussões sobre a obra já considerável do diretor – entre 1959 e 1968 ele dirigiu cerca de 15 longas-metragens e outros tantos filmes curtos ou episódios. 
 
Pouco importava se o leitor desconhecia os filmes. Os exemplos eram descritos com clareza e argumentados com veemência e lógica. A grande pergunta de Godard, a que sempre me seduziu, era: “Por que filmar este plano, e não outro?”. Por que filmar como todo mundo filmava?  A resposta padrão era: “Porque é assim que todo mundo faz.” E ele: “Então vou fazer diferente”. 
 
Curiosamente, é a mesma profissão-de-fé de Guimarães Rosa, numa carta famosa a sua tradutora nos EUA, tentando sossegá-la. 
 
No original, não há, praticamente, lugares-comuns. Tudo é atrevimento, estranhez, liberdade, colorido revolucionário. Todo automatismo de inércia, da escrita convencional, é rigorosamente evitado. Tudo pela poesia e por caminhos novos! Acabarão aceitando. 
(carta a Harriet de Onís, 3-4-1964)
 
Godard assinaria embaixo, e esta é uma das questões que ressurgem em cada cena de Nouvelle Vague. Todo mundo espera uma coisa, e Godard aparece com outra. O produtor se desespera, a estrela sente-se insegura, a maquiadora sente-se desvalorizada... 

O dia de filmagem acaba cedo, a equipe é dispensada depois do almoço, enquanto o diretor faz anotações em seus caderninhos. Quando vão usar o quarto de uma pessoa como locação, alguém começa a arrumar o quarto. Godard pergunta: “Se a gente fosse gravar os sons de uma floresta, começaria derrubando as árvores, espantando os pássaros, para conseguir um som sem interferência? E então? Deixa o quarto como está.” 



Isso vale para todos os filmes? Claro que não, mas essa revolução nouvellevagueana era justamente contra um sistema industrial de produção em que o que valia para um filme tinha que valer para todos. (Parecido com o que o cinema norte-americano tenta impor hoje em dia, principalmente em termos de receitas/fórmulas de argumento e roteiro, “jornada do herói”, etc.). 
 
Numa cena do filme, Godard vê a estrela Jean Seberg chegando de táxi para a filmagem. Ele diz: “Amanhã saia de casa mais cedo, e venha a pé até aqui.” “Para quê?” diz ela. 
 
É um diálogo que, na verdade, Godard travou com Marina Vlady nas filmagens de Duas ou Três Coisas Que Eu Sei Dela (1967). O diretor explica que é para que ela ande nas calçadas cheias, espere o sinal abrir, examine as vitrines, veja as manchetes nas bancas de jornais, deixe-se embeber do momento presente, do dia de hoje, dos fatos reais... 
 
Quando chegar na locação e tiver que atuar, o seu personagem estará com a cabeça cheia dessas coisas. Estará com a “área de transferência” cheia de memórias recentes que a ajudarão a ser espontânea do jeito certo. 
 
Isto resolve todos os problemas? Não, mas resolve um problema específico de um diretor e de uma atriz em algum filme específico. 




Ocorre com o cinema, como em qualquer arte industrial, um processo de aprimoramento técnico, formação de equipes que dominam esse aprimoramento. Depois que é estabelecido um padrão alto de qualidade técnica, começa a exigência de conformidade com esse padrão para se poder trabalhar.  Estúdios fonográficos, de cinema, de TV, funcionam assim. 
 
Daí a pouco, qualquer vírgula que se afaste um milímetro desse padrão é condenada com veemência pelo defensores do padrão: técnicos de estúdio (defendendo seus empregos), o segundo escalão da equipe (devotos da Lei do Menor Esforço e Quanto Menos Decisões Melhor), os eternamente estressados produtores-executivos, etc. A arte torna-se engessada pela obrigação de usar todos os recursos que desenvolveu, e usá-los sempre da maneira prescrita no Manual. 
 
Daí que as grandes revoluções ocorram quando o padrão é rompido criativamente por uma feliz associação entre artistas jovens dispostos a recriar tudo, e técnicos maduros mas com sensibilidade suficiente para entender aquilo e dizer: “Dane-se o padrão, parece que tá rolando uma coisa nova aqui.” Foi mais ou menos o que o produtor George Martin e seus técnicos, juntamente com os Beatles, estavam fazendo na Inglaterra na época em que Godard filmava na França. 
 
Os defensores de um “know how” técnico, seja na música, no cinema, no teatro, não são fascistas nem mercenários, mas são muitas vezes mais conservadores do que quaisquer talibãs. Eles dedicaram a vida inteira à defesa de um território heroicamente conquistado, um estilo de cinema produzido em alto nível técnico. Não verão com bons olhos um grupo de rapazes ou moças de vinte e poucos anos anunciando: “Sai da frente, tio, vai mudar tudo!”. 
 
Nouvelle Vague mostra um desses momentos históricos especiais, e mostra com simpatia, uma simpatia misturada com gratidão que só me lembro de ter visto no filme Os Sonhadores (“The Dreamers”, 2003), de Bernardo Bertolucci. O carinho nostálgico por uma época que foi especial, sim, e que não se repetirá, porque os jovens daquela época conseguiram o que queriam: mudar o mundo. O mundo mudou, os problemas agora são outros, as revoluções de que precisamos são certamente outras, e nada nos assegura de que acontecerão. Nosso alívio é pensar que, pelo menos naquele momento da História, aconteceu. 



(o ator Guillaume Marbeck e o diretor Richard Linklater)

 
 
 
 
 







quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

5211) A quebra da Quarta Parede 2 (11.12.2025)





(The Great Train Robbery, 1903)

 
Escrevi algum tempo atrás, no meu mural do Substack, um artigo intitulado “023 – A quebra da quarta parede”. 
 
(Digressão: se você gosta de ler os artigos do Mundo Fantasmo, talvez lhe interesse ver os que eu publico no Substack – são textos diferentes, mas no mesmo estilo daqui. O Substack virou, se bem me exprimo, uma filial, um puxadinho do Mundo Fantasmo.) 
 
Procure aqui: https://substack.com/@brauliotavares?
 
A “quarta parede” é aquele conceito muito usado no teatro, sugerindo que o palco é um aposento comum, com quatro paredes, só que a “quarta parede” é invisível, mas existe – é o espaço vazio que separa o palco e a platéia. 
 


A quarta parede é uma metáfora da ilusão teatral, ou do acordo teatral, mediante o qual os atores fazem de conta que o que sucede no palco é de verdade, e nós fingimos que acreditamos. Fingimos que existe, sim, uma quarta parede ali na beira do palco, e que ela separa duas realidades que não se comunicam. 
 
Quebrar a quarta parede é, basicamente, dirigir-se à platéia. 
 
No teatro, isto sempre existiu, principalmente no teatro mais popularesco, descontraído, em que ninguém está preocupado em fornecer “ilusão de realidade”. Um dos recursos mais interessantes são os famoso “à parte” tão frequentes nas farsas e comédias do século 18 ou 19. 
 
MARQUESA DE VELMONT – Oh, meu caro Conde, sentemo-nos aqui sob este caramanchão! Estou tão emocionada com o nosso noivado... Dê-me sua mão. Fico feliz em ver que o que o atrai em mim não é a minha fortuna.
 
CONDE RENARD (PEGANDO NA MÃO DELA) – Claro, minha querida. (À PARTE, PARA A PLATÉIA) Vocês já viram uma criatura mais inocente do que esta? Chega dá pena!

 
Atores dirigem-se à platéia sempre que isso reforçar aquela cumplicidade mútua em que os espectadores se projetam num personagem. 
 
Uma forma muito popular da quebra da quarta parede é quando os atores introduzem os famosos “cacos”, piadinhas que não estavam no texto original, e que muitas vezes nada têm a ver com ele. São meros gracejos do próprio ator, ou referências a fatos do momento, coisas de conhecimento de todos.  



(Bertolt Brecht, A Alma Boa de Setsuan)
 

Tudo isto conduz a uma idéia: há um tipo de encenação que ganha com a manutenção da quarta parede, e um tipo que ganha com sua quebra. Produzir essa ruptura e dirigir-se explicitamente ao público pode ter um efeito cômico, como nos exemplos acima, mas também um efeito dramático. No “teatro épico” de Bertolt Brecht, frequentemente os atores interrompem uma ação e questionam o público. Estão percebendo o que acontece? O que acham daquilo? Está correto, está errado? O que deveriam fazer os personagens, numa situação como aquela?  
 
Esse recurso aparece na literatura de uma forma que considero menos disruptiva, menos sobressaltante. Num certo tipo de literatura, pelo menos, dirigir-se ao leitor é algo comum, estabelece um laço coloquial que parece nos trazer de volta às histórias em torno da fogueira, ou diante da lareira, ou na mesa de bar. Não há quebra de realidade. Alguém esta contando uma história a você, leitor. 



 
Machado de Assis tem uma maneira inimitável e encantadora de usar esse recurso. Machado escrevia nos jornais e revistas de sua época. Seus contos, tantas vezes, são conversas mansas, episódios contados numa voz sem pressa, trazendo o leitor (ou mais frequentemente: “a leitora”) para dentro da ação. 
 
Imagine a leitora que está em 1813, na igreja do Carmo, ouvindo uma daquelas boas festas antigas, que eram todo o recreio público e toda a arte musical. Sabem o que é uma missa cantada; podem imaginar o que seria uma missa cantada naqueles anos remotos. 
 
O conto é o clássico “Cantiga de Esponsais”, um dos meus preferidos. É um conto de 1883, publicado nas revistas A Estação e O Álbum, antes de ser recolhido em Histórias Sem Data (1884). 
 
O conceito de data é crucial neste caso. Para nós, alienígenas de 2025, os anos de 1883 e de 1813 são igualmente remotos, quase indistinguíveis. Machado está contando uma história ambientada 70 anos antes, num tempo que ele nem sequer conheceu. Ele precisa chamar a atenção da leitora para esse detalhe, e convocar sua imaginação: “Podem imaginar o que seria...” 
 
Trazer a leitora para dentro do conto, dirigir-lhe a palavra, conduzi-la, tudo isto sem quebrar a “ilusão de realidade” (a ilusão de que aqueles acontecimentos narrados ocorreram de verdade), não é uma tarefa muito fácil. 
 
Hoje em dia, nós, blogueiros e cronistas da imprensa diária, usamos e abusamos do “caríssimo leitor”, “meu caro leitor”, “querida leitora”, vocativos meio insulsos, sugerindo uma intimidade, uma espécie de “tamo junto”, que não vai muito além disto.  
 
Tudo que uma leitora quer é sentir firmeza, sentir que o autor sabe o que está fazendo quando se dirige ao nosso mundo e quando nos leva ao mundo que está fantasiando. Machado mostra sempre essa firmeza, com a segurança que exibe no primeiro parágrafo de “Habilidoso” (Gazeta de Notícias, 1885): 
 
Paremos neste beco. Há aqui uma loja de trastes velhos, e duas dúzias de casas pequenas, formando tudo uma espécie de mundo insulado. Choveu de noite, e o sol ainda não acabou de secar a lama da rua, nem o par de calças que ali pende de uma janela, ensaboado de fresco. Pouco adiante das calças, vê-se chegar à rótula a cabeça de uma mocinha, que acabou agora mesmo o penteado, e vem mostrá-lo cá fora; mas cá fora estamos apenas o leitor e eu, mais um menino, a cavalo no peitoril de outra janela, batendo com os calcanhares na parede, à guisa de esporas, e ainda outros quatro, adiante, à porta da loja de trastes, olhando para dentro.
 
O que garante a fluência do texto é a forte impressão de realidade produzida por tantos detalhes verossímeis. É um ambiente rico de detalhes visuais (que lembram um álbum de fotos de Cartier Bresson), vívido, que não se rompe quando o autor diz que “...cá fora estamos apenas o leitor e eu...”



Machado inventou este recurso? De jeito nenhum. Todos os autores de folhetim do século 19 o utilizavam, puxando o leitor pela manga da camisa para comentar certas atitudes dos personagens, explicar certos detalhes do ambiente. É outro tipo de “narrador onisciente” – ele não apenas parece conhecer tudo do mundo que nos está contando, como também tem trânsito livre neste daqui. 
 
Isto é “quebra da quarta parede”? Sim, no sentido de que qualquer narrativa de ficção pressupõe essa divisória invisível entre nosso mundo e o outro. No entanto, uma das lições da narrativa com origem no jornal é essa coloquialidade, esse trânsito fácil entre os dois mundos. Esse Machado de Assis que trata o(a) leitor(a) com intimidade logo nas primeiras frases de seu conto. 
 
Não me perguntem pela família do Dr. Jeremias Halma, nem o que é que ele veio fazer ao Rio de Janeiro, naquele ano de 1768, governando o conde de Azambuja, que a princípio se disse o mandara buscar; esta versão durou pouco. 
(“O Lapso”, Histórias sem Data
 
Parece-lhe então que o que se deu comigo em 1860, pode entrar numa página de livro? 
(“O Enfermeiro”, Várias Histórias
 
Era conveniente ao romance que o leitor ficasse muito tempo sem saber quem era Miss Dollar. Mas por outro lado, sem a apresentação de Miss Dollar, seria o autor obrigado a longas digressões, que encheriam o papel sem adiantar a ação. Não há hesitação possível: vou apresentar-lhes Miss Dollar. 
(“Miss Dollar”, Contos Fluminenses
 
Vêde o bacharel Duarte. Acaba de compor o mais teso e correto laço de gravata que apareceu naquele ano de 1850, e anunciam-lhe a visita do major Lopo Alves. Notai que é de noite, e passa de nove horas. 
(“A Chinela Turca”, Papéis Avulsos
 
 
Cinema, teatro, televisão tudo isto oferece aos olhos do público um universo cuja existência se impõe visualmente, sonoramente. A quarta parede surge muitas vezes para preservá-lo, impedir que se desfaça como um enorme aquário trincado.
 
Na literatura, só existe a voz do autor, murmurando ao ouvido do leitor. Não há parede: há essa voz que aproxima duas consciências e, quando bem manejada, consegue fazer com que pensem juntas. 
 
Aqui, meu artigo no Substack sobre o mesmo tema: 
https://brauliotavares.substack.com/p/023-a-quebra-da-quarta-parede-1



sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

5210) A Mesa do Banquete era tão Longa (5.12.2025)


 



A mesa do banquete era tão longa

que o meu assento estava na cozinha.

Havia caviar, faisão, vitualhas tantas...

Eu me servi cerveja, e moela com farinha.

 

De longe eu via o mundo e seus senhores,

tanto maiores quanto mais distantes,

e mesmo estes, os que eu avistava,

deviam estar nos ombros de gigantes.

 

Uma orquestra tocava, e não se via

se nos vinha do chão, ou se do céu.

Entre nós desfilavam bailarinas

invisíveis: o corpo era o seu véu.

 

Olhei meu prato. Estava sempre cheio.

E o copo mais pesado que um navio.

Tudo oscilava, os pêndulos, os lustres,

saltimbancos saltavam no vazio.

 

Havia riso, havia amor sem conta,

como corrente de eletricidade

acendendo um clarão de ponta a ponta

dessa mesa maior que uma cidade.

 

Eu me servi do quanto estava exposto.

Do que tinha o direito, e tive a chance,

tudo eu provei, de tudo tive o gosto,

tudo foi meu que estava ao meu alcance.

 

E a mesa se alongou, e alongou tanto

que de repente eu me encontrei na rua.

Saciado de festas e de encantos,

voltei a pé.  E a mesa continua.

 

 







sexta-feira, 28 de novembro de 2025

5209) Sou o Trocador de Estrelas Queimadas (28.11.2025)


 

Sou o Trocador de Estrelas Queimadas.
Aquelas de que ninguém sente falta,
mas é preciso manter brilhando, e se esforçar
para que haja um pouco de ordem no Universo.
Na noite seguinte, lá está ela. Triunfando
para ninguém além de si mesma
e deste operário que a trocou.
 
Um coqueiro faltou na praia?
Um colega já vem arrastando outro
pelas enormes raízes. Aos transeuntes
aquilo passa despercebido.
Estão conferindo seus celulares
enquanto nós, os roadies do cosmos,
pedimos licença e vamos passando.
 
Reconstruímos fachadas. Trazemos de volta
a praça omitida, o prédio faltante.
Corrigimos os erros de continuidade
de uma Realidade já de si precária,
e que não resiste a um exame,
a um questionamento,
a um dedo na ferida.
 
A Existência é uma ferida no Nada,
uma chaga que se espalha.
Seus resultados não passam
de balbucios, contradições,
curto-circuitos de incompletude;
mas alguém precisa
todo dia arredondar a Terra,
e encher o mar todas as noites.
 
 


quinta-feira, 20 de novembro de 2025

5208) "O Agente Secreto" (20.11.2025)

 



Um dos começos mais famosos da literatura é o de L. P. Hartley em seu romance The Go-Between (1953), belamente filmado por Joseph Losey (“O Mensageiro”, 1971).

 

O Passado é um país estrangeiro. Lá eles fazem as coisas de um jeito diferente.

 

O Brasil de 1977 é o país estrangeiro visitado por Kleber Mendonça Filho em O Agente Secreto (2025). É um filme sobre a ditadura militar onde os militares praticamente não aparecem.  E onde se confirma o ditado popular: “O grande problema nas ditaduras nem é o ditador: é o guarda da esquina”. Porque os guardas-da-esquina, percebendo o novo estado de coisas instaurado pela ditadura, passam a adotar seus métodos, em benefício próprio.



Esta premissa é estabelecida na primeira sequência do filme, em que “Marcelo”, o personagem de Wagner Moura, é pachorrentamente achacado por um policial rodoviário, que ignora um cadáver ao lado, exposto aos cães, mas espreme o motorista do fusca até conseguir extrair dele meio maço de cigarros amassados. Não tinha colírio para dizer um “pinga aqui”.

 

Minha sorte foi ter ido ver o filme sem saber nada dele, a não ser um trailer com aquela cena onde um cara aborda Wagner dizendo: “Você é policial?...” “Não, não sou policial.” “Tem cara de policial. Como é seu nome?”  “Marcelo.” “Marcelo de que?” “Alves.” “Nome de policial.” “Eu não sou policial.”



(Wagner Moura e Kleber Mendonça Filho)

 

Já li uma porção de textos sobre o filme, e algumas centenas de comentários. Percebo que muita gente acha o filme “lento”, acha que as coisas demoram a acontecer... Marcelo é um cara que está se escondendo, isso fica claro desde cedo. E em termos dramatúrgicos é importante (penso eu) que a gente só vá saber exatamente quem é ele, e por que se esconde, lá para uma hora de filme.

 

O escondimento é o traço principal do personagem. E do ambiente onde ele, por isto mesmo, vai parar.

 

Marcelo vai morar num pequeno prédio, num daqueles edifícios tão palpáveis, tão reais, de que a cidade cinematográfica de Kleber está cheia (O Som ao Redor e Aquarius, principalmente, são filmes sobre prédios, vizinhanças, espaços de moradia, e mostram formatos arquitetônicos subliminarmente recifenses e brasileiros).



É o prédio dos refugiados, o prédio das histórias pela metade. Há alguns angolanos fugidos da guerra civil. A moradora anterior do apartamento foi assassinada pelo marido. Ninguém comenta. Sabe-se das histórias a meia-boca, um pedaço aqui, outro ali.


É tempo de meio silêncio,

de boca gelada e murmúrio,

palavra indireta, aviso

na esquina. Tempo de cinco sentidos

num só. O espião janta conosco. (...)

No beco

apenas um muro

sobre ele a polícia.

No céu de propaganda

aves anunciam

a glória.

No quarto,

irrisão e três colarinhos sujos.

(Carlos Drummond, "Nosso Tempo", em "A Rosa do Povo", 1945)


O poema de Drummond é do tempo da ditadura Vargas. Quando acontecem os fatos de O Agente Secreto, esse já era um passado distante, mas... e daí?  Disseram uma vez a William Faulkner que parasse de falar do Passado, que o Passado tinha morrido, e ele respondeu: “O Passado não morreu. Na verdade, ele nem sequer passou.”

 

Cada onda ditatorial que varre o país e vai embora deixa atrás de si lembranças, respostas, atitudes. Entre elas, o escondimento, a meia-palavra, a história mal-contada, a versão incompleta, o documento com linhas inteiras borradas em tinta preta. (E, como consequências colaterais, as Lendas Urbanas e as Teorias da Conspiração.)




O escondimento é o traço principal da uma época de repressão, de perseguições gratuitas, de vendetas pessoais que ficam impunes. Uma época em que um presidente da República tinha um AVC, ficava inválido, e a imprensa não podia noticiar. Ou em que um dos jornalistas mais conhecidos da grande imprensa era “suicidado” e ninguém podia escrever a respeito. Tudo se esconde, se deixa não-dito, vai para baixo do tapete. E depois, se esquece. O esquecimento é também uma forma de esconder alguma coisa.

 

Embora Armando-Marcelo possa ser visto como herói ou como vítima, ele é um personagem que tem lá suas transversais. “Eu sei usar um martelo”. Ele seria capaz de se vingar brutalmente do homem que o persegue, se tivesse a chance. E no momento de confessar isso, ele desliga o gravador, usa a seu favor o direito à censura, ao ocultamento.

 

Ele traiu a esposa Fátima, quando ela era viva? O pai dela lhe pergunta a certa altura: “Quando minha filha estava viva, você raparigou?”. Armando é um rapaz direito. Não custava nada mentir: “Que é isso, Seu Alexandre, eu sempre fui 100% fiel a Fátima”. Mas ele dá um drible de corpo atrás do outro e tenta mudar de assunto. É um rapaz direito, e não quer mentir, mas provavelmente raparigou.

 

Já os policiais... Há algo de vingativo no incômodo realismo com que eles são retratados. Aquela polícia civil de peixes-miúdos, da lumpen-direita, aquele exército anônimo de homens rancorosos, covardes, defendendo-se mediante uma jovialidade excessiva, agregando-se em pequenas máfias de mútuo apoio para descolar uma propina ou um cala-a-boca. Sabem-se fracos e por isso apegam-se a quem detém o Poder. Serviram a ditadura militar, e se aqui porventura baixasse um dia uma ditadura comunista, seriam eles os primeiros à sua porta, ansiosos para prender e matar em nome dela.


 

E os pistoleiros terceirizam tudo. O Brasil é sempre o país da violência terceirizada: cada encarregado de um crime embolsa o dinheiro, e paga uma fração desse cachê a outro, que passa a outro, até chegar num peixe-miúdo que não tem para quem passar adiante, e que de alguma maneira não faz aquilo só por dinheiro, ou por ódio pessoal: faz pelo prazer de matar, de dizer “fui lá e fiz, sou foda”.

 

Tenho visto algumas queixas em relação ao filme, e muitas poderiam ser traduzidas assim: “Eu fui pensando que era um filme tipo espionagem, mas é um filme sobre um cara assustado, que não reage, não faz nada, fica fugindo o tempo todo...” Talvez o título tenha a ver com isso. Eu gosto do título, mas para o público em geral talvez “venda a idéia” de um filme jamesbondiano.



Um dos cartazes do filme tem três rostos de Wagner Moura, que interpreta, na verdade, três personagens. 

Armando é o barbudo e cabeludo, o pesquisador de universidade pública que encara os poderosos, não leva desaforo pra casa e acaba dando murro em ponta de faca. 

“Marcelo”, de bigodinho e cabelo curto, o gato escaldado, calmo por fora, mas por dentro sempre em guarda, fugido, refugiado, sem ter a quem apelar. 

E Fernando, o filho, clean-cut kid, reservado, distante, comentando mais sobre os avós paternos do que sobre os pais, e diz à pesquisadora, sem espanto: “Você lembra do meu pai mais do que eu”. Ele está em paz, sereno, simpático, rosto limpo, jaleco branco. Ele é uma casa bacana construída em cima de um sumidouro.





sexta-feira, 14 de novembro de 2025

5207) Quem é Susan? (14.11.2025)



 
É um meme que circula por aí há muito tempo, e cada ver que emerge na tela eu solto uma gargalhada. O texto é em inglês. Alguém aplica uma prova para crianças, com problemas simples de Matemática. 
 
O problema destacado na foto diz: 
 
Jane tem 12 lápis, e Kim tem 7 lápis. Quantos lápis Susan tem a mais do que Kim? 
 
E no espaço para a resposta a criança escreveu: 
 
Quem é Susan? 
 
Este pequeno episódio gera tantas idéias que chega dá uma vertigem. 
 
A primeira coisa que me ocorre é: a resposta da criança foi considerada certa? A criança perdeu o ponto? Sei de muitos colégios, e já vi muitos exemplos, em que uma criança questiona uma pergunta-de-prova. Questiona de uma maneira totalmente aceitável, mas perde o ponto e ganha uma repreensão. 
 
(O que, no-fundo-no-fundo, é muito mais educativo do que passar-lhe a mão na trunfa e proclamá-la inteligentinha. A punição por questionar a autoridade avisa: “Filhota, o mundo funciona assim, caia na estrada e perigas ver.”) 
 
A segunda coisa é a pena que eu tenho da professora que elaborou a prova. Esse texto deve ter sido preparado tarde da noite, após um dia estafante, um jantar conflituoso ou às pressas, uma pilha de provas para corrigir, outra prova para preparar, e chega um momento em que as perguntas envolvem tantas “Susans” e “Marys” e o escambau... Não há como não errar, e como não ter pena de quem erra. 
 
A terceira coisa é a quebra existencialista. A criança está crescendo, aprendendo a ler, a escrever, a fazer contas, e é nesta fase que começa a ser-lhe vendido, em suaves e eternas prestações, o enorme Falso Bilhete Premiado da Loteria que é a entrada no mundo adulto. “Estude, pra se formar, arranjar um bom emprego, ganhar dinheiro e casar.” E a venda desse bilhete depende terrivelmente da idéia de que a vida é bela, o mundo é justo, o país vai pra frente, a felicidade é para todos, a honestidade é recompensada... 
 
Enfim: é uma cartela inteira de bilhetes que a criança está comprando com seu esforço. 



 
E de repente, no meio daquilo, aparece o equivalente à cara de um palhaço estirando a língua, botando os polegares nos ouvidos e agitando os dedos. Tem um erro na prova. A realidade está bugada. O mundo é falso. Os professores erram. Os padres pecam. Os jornalistas mentem. A polícia comete crimes. 
 
Quem é Susan? 
 
Esta Susan invisível e intrusa é o sexto lado do Pentágono, a terceira margem do rio? Algo que não podia existir, mas está ali? 
 
Por trás de uma contazinha aritmética inofensiva (12 – 7 = 5) foi introduzida uma serpente daninha e perniciosa no Éden da Matemática: o elemento humano. Enquanto se tratasse apenas de Jane e de Kim, que por definição já faziam parte do problema, tudo se resumia a fazer as contas, de forma impessoal e não-envolvida. Você tem tantos, e você tem tantos. Mas de repente aparece um nome não previsto na equação. Um elemento humano intruso, não-convidado, que não estava na ficha técnica do mundo. 
 
Os problemas escolares de Matemática são assim: não admitem o elemento humano, que está ali só para ilustração. “Joãozinho comprou 50 melancias na feira, mas no trajeto perdeu 8; quantas melancias Joãozinho trouxe para casa?...” Ninguém ousará perguntar: “Mas para que Joãozinho queria tantas melancias? E ele estava sozinho? Ele trouxe as melancias num carrinho, num táxi, num cesto?...”  Essas questões são proibidas. A única função da existência do hipotético Joãozinho é ajudar a entender que 50 – 8 – 42. 
 
Quem é Susan? 
 
Susan é um clinâmen, um salto quântico inesperado, uma mutação não prevista. Alguém que não estava nos cálculos mas de repente irrompeu problema adentro, estraçalhando tudo com sua existência intrusa. 
 
É o “J. Pinto Fernandes” que não estava na história mas chega de repente e arrebata consigo a sapeca Lili, no poema de Carlos Drummond (“Quadrilha”). 
 
Ou então é alguém parente do sujeito que vai passando na rua e alguém lhe grita: “Manuel, tua mulher está passando mal na tua casa em Niterói!...” e ele dispara na carreira, pega um táxi, e quando está no meio da ponte pensa consigo: “Mas... espere aí... eu não me chamo Manuel, eu sou solteiro, e eu não moro em Niterói!...”. 
 
Georges Perec (a quem devo a dica do conceito de clinâmen, já comentado aqui no blog) dizia que o uso de uma “contrainte” na literatura, ou seja, o uso de uma regra auto-imposta pelo autor, deve sempre permitir uma exceção. O sujeito pode dizer: “Vou escrever um texto em que todas as palavras começam pela letra C”, e ele deve ser capaz de obedecer a essa regra; mas no final, depois do texto impecavelmente pronto, ele deve (diz Perec) inserir discretamente, sutilmente, uma palavrinha que não obedece à regra. Uma exceção proposital, que ele poderia perfeitamente ter evitado. Por que? 
 
Veja aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/search/label/clin%C3%A2men
 
Respondo: para contaminar de realidade e de imprevisto esse “constructo” artificial que é a literatura. Para contar (digamos, hipoteticamente) a história completa da família Buendía, com seus prenomes maniacamente repetidos, mas poder, a certa altura, dizer algo como: 
 
Nesse instante, bateram na porta da frente, a avó Úrsula disse: “Aureliano, tem gente batendo, vá ver quem é”. Aureliano abriu a porta para uma moça loura, de olhos azuis. “Quem é a senhorita?”, perguntou. E ela disse: “Eu sou Susan”.