quinta-feira, 9 de outubro de 2025

5202) A Zona crepuscular (9.10.2025)

 


(Annihilation, de Alex Garland, baseado na obra de Jeff Vandermeer)


 
A ficção científica tem, por um lado, uma liberdade imaginativa sem limites. Claro que por outro lado existe o compromisso com a Ciência, mesmo quando é apenas da boca para fora. 
 
A Ciência serve de bússola. Aponta para a realidade do mundo material. E por isso é útil, mesmo quando estamos falando de coisas impossíveis neste mundo – viagens no tempo, viagens mais rápidas que a luz, teleporte de seres vivos que chegam vivos (e idênticos, e lúcidos!...) do lado oposto... 
 
A Ciência, na FC, serve como o Norte magnético apontado pela bússola. Não quer dizer que o navegador tenha que viajar para o Norte. Ele precisa apenas saber em que direção fica. 
 
Se o autor consegue se situar nas quatro direções dessa rosa-dos-ventos ou desse eixo-cartesiano, ele é livre para imaginar o que bem entender. É literatura.
 
Quem dá as coordenadas na FC é a imaginação, não a Ciência. E se muitas vezes uma parece contradizer a outra, tanto melhor: é essa tensão que acumula energia mental no escritor e o leva a ser mais engenhoso, mais ardiloso, mais convincente. 
 
Quando não parece haver nada mais para inventar, a FC tira da cartola uma imagem surpreendente. A Encyclopedia of Science Fiction registra (https://sf-encyclopedia.com/entry/cliches) uma imagem “da FC de fins do século 20, e que não poderia ter sido prevista”: espaçonaves em forma de árvore!  O verbete dá exemplos de Stephen Baxter, Larry Niven, Dan Simmons – este em Hyperion, recentemente traduzido no Brasil pela Ed. Aleph. 
 
Outra imagem recorrente é a Zona. 




Não a Rua das Vitrines em Amsterdam, se bem que esta mereceria uma versão FC, por que não?  Eu me refiro à Zona, que todos nós conhecemos, do filme Stalker (Andrei Tarkovsky, 1979), e do romance Roadside Picnic (1972, Arkady e Bóris Strugatski; no Brasil, Piquenique na Estrada, Ed. Aleph). 
 
É um local onde aparentemente houve um pouso e permanência de extraterrestres. Depois que foram embora, deixaram para trás uma grande quantidade de objetos incompreensíveis, e graves distorções no espaço-tempo. Uma espécie de Chernobyl ultra-dimensional, cheia de armadilhas invisíveis e perigosas. (O romance dos Strugatsky é anterior ao desastre de Chernobyl, mas pode ter se inspirado em outro, mais antigo.) 
 
Os stalkers são sujeitos ousados que aprendem a se deslocar naquela zona perigosa, e o fazem para trazer de lá objetos, souvenirs, que vendem bastante caro. E às vezes servem de guia (como num safari) para pessoas que querem curtir a aventura de entrar na Zona Proibida. 
 
Sobre algum possível simbolismo do filme, Tarkovsky declarou: 
 
A Zona não simboliza nada, não mais do que qualquer outra coisa que aparece em meus filmes. A Zona é uma zona qualquer, é a vida, e quando um homem a atravessa ele pode ser destruído ou pode chegar intacto do lado oposto. 
(IMDB, trad. BT)
 
Uma versão recente desse ambiente é a “Área X” imaginada por Jeff Vandermeer em sua série de romances Annihilation, Authority, Acceptance (todos 2014) e Absolution (2024). Os três primeiros saíram no Brasil pela Ed. Intrínseca, com tradução minha. 


 
A Área X de Vandermeer fica, aparentemente, na região de mangues e pântanos da Flórida. Alguma coisa ocorreu ali, e deixou essa área cercada por uma espécie de campo de força invisível que a bloqueia nos dois sentidos. O Exército descobre uma passagem, e começa a mandar destacamentos de soldados e cientistas para investigar. Ali dentro ocorrem estranhas mutações biológicas. Há um farol abandonado, e um poço que desce (com escadaria em espiral) terra adentro, como uma torre invertida. Quem emerge da Área X volta amnésico, e morre de câncer pouco depois. 
 
Vandermeer explora de maneira brilhante nos três primeiros livros (ainda não li o quarto) esses acontecimentos bizarros, deixando claro que o Farol é o ponto crucial de tudo, e sugerindo que alguns personagens foram “copiados” e transportados para outro ponto do espaço. 


 

E agora estou encerrando a leitura de Nova Swing (2007), romance de M. John Harrison ambientado num planeta distante, nas proximidades de uma zona misteriosa do espaço denominada “o Território Kefahuchi” (“the Kefahuchi Tract”), onde por alguma razão as leis da física não funcionam. A premissa do livro é que um fragmento desse Território caiu no planeta, em cima de uma cidade à beira-mar chamada Saudade. 
 
Sim, “Saudade” mesmo, em português. Harrison explica o significado da palavra (e nas notas do final do livro agradece a dica a “Luis Rodrigues”). 
 
Saudade é uma mistura de cidade de policial noir e cidade futurista, mistura que rapidamente se tornou clichê depois de filmes como Blade Runner (1982) e livros como Neuromancer  (1984).  Em casos assim, a originalidade, se houver, tem que vir nos detalhes e no espírito. Felizmente, Harrison é bom nas duas coisas. 
 
Vic Serotonin é um stalker que conduz pessoas em visitas à Zona, ou ao “site”, que ocupa uma parte considerável da cidade, entrando pelo mar adentro. A Zona é protegida por cercas e vigiada pela polícia, mas sempre é possível encontrar uma brecha. Esse conceito dramatúrgico vem sendo desenvolvido de maneira coerente por estes autores (Strugatski, Tarkovsky, Harrison, Vandermeer), em que cada um pede emprestados detalhes dos demais e os reutiliza, como se todos estivessem se referindo a um só lugar. 



 
No livro de Harrison, acontece de vez em quando uma invasão de gatos, uma proliferação inexplicável; na obra de Vandermeer, são coelhos. 
 
Chuva, sol, vento, luz – esses efeitos surgem de forma desencontrada em todas essas zonas. Como se o espaço tivesse se estilhaçado e cada fragmento pertencesse a um instante diferente do tempo. 
 
M. John Harrison assim se refere à Zona de Saudade, citando a “auréola” (uma espécie de halo intermediário que a rodeia, mas não propriamente um campo-de-força intransponível): 
 
Não havia auréola nenhuma, afinal; havia ali apenas a mais delgada das películas entre diferentes estados de coisas. Você de repente penetrava na pior parte daquilo, sem se dar conta. 
(p. 149)
 
Não importa o que acontecesse, as sombras eram projetadas em ângulos absurdos para a época do ano, como se a geografia estivesse se lembrando de alguma coisa coisa. 
(p. 164)
 
Saudade é uma cidade à beira-mar e ao mesmo tempo um espaçoporto. É outro clichê nostálgico da FC. As histórias de viagens espaciais herdaram algumas figuras dramatúrgicas das velhas histórias de marinheiros e navios. Um deles é o ambiente meio lumpen de um cais do porto, fervilhante de vagabundos, desempregados, descuidistas, misturados a marujos calejados e competentes que não se destacam na multidão. 
 
Uma viagem ao espaço é um equivalente literário de uma viagem ao oceano. Pelo menos três romances de Samuel R. Delany começam com um capitão de espaçonave perambulando no cais-do-espaçoporto e recrutando “no olho” uma tripulação heterogênea: Empire Star (1966), Babel-17 (1966) e Nova (1968). 
 
Saudade, como todo espaçoporto, está impregnada dessa nostalgia pelo espaço. 
 
“Alguns viajantes marítimos,” ela havia escrito, “nunca conseguem re-adaptar suas pernas ao solo firme. Desembarcam no cais, mas daí em diante caminham no solo com a dificuldade de quem tenta caminhar sobre um colchão.Sentar quieto é pior ainda, ou tentar adormecer. Quando andam, pelo menos os sintomas diminuem”. 
(p. 143)
 
Há uma correspondência poética entre essa Zona proibida, composta de estilhaços do espaçotempo, e a cidade em si. Ali, as pessoas andam em Cadillacs da década de 1950, fumam cachimbo, escutam jazz ou tango (ou “New Nuevo Tango”) no bar. Mas há uma pessoa com braço prostético cheio de telas e painéis de comunicação; a engenharia genética pode redesenhar um corpo à vontade do cliente, que pode ser transformado numa réplica de Albert Einstein ou de Audrey Hepburn. 
 
Fora da Zona (ou melhor: no entorno da Zona) o tempo parece também ter se fraturado e recomposto, só que agora com cacos de cultura, memória, hábitos... Os resíduos de uma História terrestre que todos eles conhecem vagamente de ouvido, como nós de hoje conhecemos coisas tipo “Idade Média” ou “Antiguidade”. 
 
John Clute, um dos meus críticos favoritos de FC, diz, ao comentar o livro: 
 
A palavra em português “saudade” implica numa nostalgia romântica, e uma aspiração sonhadora de que aquilo que foi perdido possa ser recuperado novamente; a diferença deste sentimento para com termos como desideratum ou Sehnsucht reside precisamente nessa pungente persistência da esperança. 
 
É curioso este comentário final. Alguém, famosamente, já definiu saudade como “vontade de ver de novo”, mas nem sempre essa aspiração é satisfeita. Não há como não lembrar a sextilha igualmente famosa de Severino Pinto do Monteiro: 
 
Essa palavra saudade
conheço desde criança...
Mas a saudade do ausente
não é saudade, é lembrança;
saudade só é saudade
quando morre a esperança.
 


 
 
 
 





sábado, 4 de outubro de 2025

5201) Contracapa de Gemini (4.10.2025)

 


(Al-Jazari, "The Elephant Clock")

 
 
&  a superstição é um mapa que a pessoa desenha e depois segue 
 
&  aquele goleiro agarra até meteoro 
 
&  no futuro vão nos implantar um telefone no ouvido e um despertador sei lá onde 
 
&  ganhei uma balança com três pratos e ainda estou me orientando 
 
&  elas dizem que é um clube de leitura, mas tudo indica que é uma seita de bordadeiras vudu 
 
&  no meio dessa turma eu me sinto uma zebra de listras horizontais 
 
&  todo escultor é um Orfeu que olhou para trás 
 
&  isso que vocês me pedem só vou poder atender no dia de São Sempre 
 
&  quando o absurdo da vida se torna um problema, o jeito é usá-lo também como solução 
 
&  vivo imbuído daquela sensação de heroísmo anônimo que pulsa em todo tijolo de represa 
 
&  quem tem forma e conteúdo é almofada; livro tem letras e eletricidade 
 
&  o problema da literatura de hoje é que além do Alzheimer da memória existe um da imaginação 
 
&  minha relação com ela não é bem de amor platônico, é mais uma espécie de mestre-sala e porta-bandeira 
 
&  o impossível é apenas um painel onde nem todos os botões foram apertados 
 
&  um filme de Kubrick não é muito diferente de um cubo de Rubik
 
&  toda traição acarreta um salto da mentira para a verdade 
 
&  a poesia é como a luz das estrelas, que não projeta sombras 
 
&  um fagote é um foguete cujo som espesso é capaz de fagocitar o da orquestra inteira 
 
&  quem vai a um baile no castelo do inimigo corre o perigo de não ter com quem dançar 
 
&  certos talentos são solúveis no fracasso, outros no sucesso 
 
&  o vento que traz a canção é o mesmo que leva embora o cantor 
 
&  é difícil viver num mundo onde cada pessoa tem um megafone 
 
&  a morte só é tragédia na juventude, quando temos certeza de que somos imortais 
 
&  passei direto do catecismo para o ceticismo 
 
 







quinta-feira, 25 de setembro de 2025

5200) A forma e o conteúdo (25.9.2025)





Quando falamos em forma e conteúdo, isso nos evoca imagens visuais: a forma é algo que está fora, está ao redor, e o conteúdo é algo que está contido, abrigado, reunido dentro dessa forma.
 
A imagem mais frequente (já perguntei isso muitas vezes) é a de um copo dágua. O copo é a forma, a água é o conteúdo.  Algumas pessoas explicam: “E o conteúdo toma a forma do vaso que o contém.”
 
Para mim parece fazer algum sentido. É como dizer que num filme a forma são as imagens, e o conteúdo são os diálogos (também já ouvi esta explicação). Parece fazer sentido, sim.
 
Em todo caso, leituras antigas e conversas antigas já me sugeriram uma abordagem diferente, que por enquanto tem dado para o meu gasto.
 
O que chamamos de “conteúdo”, muitas vezes, eu prefiro chamar de o “tema” ou o “assunto” do livro/filme/quadro etc. Ou, de forma mais abrangente, o conjunto de idéias, histórias, situações etc. abordadas nessa obra.
 
Qual o conteúdo de Dom Casmurro, de Machado de Assis? Muita gente dirá que é o ciúme doentio de um homem inseguro da própria masculinidade, casado com uma mulher que além de ser bonita é bem mais esperta do que ele.
 
Qual o conteúdo do filme 2001, Uma Odisséia no Espaço? Muita gente dirá que é a evolução da espécie humana, desde os antropóides pré-históricos até o homem de hoje, conquistador do Sistema Solar, e o homem do futuro.
 
Qual o conteúdo de Ainda Estou Aqui, filme brasileiro recente, dirigido por Walter Salles? Muita gente dirá que é o modo como a repressão da ditadura militar destruiu famílias que mesmo assim se mantiveram firmes após as perdas que sofreram.
 
E assim por diante. Eu prefiro considerar, porém, nesses casos, que isto não é propriamente o “conteúdo” de cada filme, e sim o tema. São duas coisas que se misturam bastante em nosso juízo. O que as separa e as distingue? Provavelmente é a “forma”.



(o Tema, filtrado pela Forma, produz o Conteúdo)

 
Minha proposta de interpretação é:
 
O “tema” é um conjunto de idéias que orientaram a criação da obra, filtradas pela “forma” – na verdade, criadas pela forma, que é a obra em si (o texto, o filme, etc.,). Essas idéias, ao serem assimiladas pelo leitor/espectador, produzem uma terceira coisa que seria o “conteúdo”.
 
Por isso, existe uma dificuldade em separar a forma e o conteúdo, porque este é determinado por aquela, nessa obra específica. Se a forma não fosse aquela, fosse outra, o tema poderia ser o mesmo (ciúme, evolucionismo, repressão) mas o conteúdo seria necessariamente outro.
 
Acho que fica mais claro quando comparamos obras parecidas. A Última Ceia que aconteceu entre Jesus Cristo e seus apóstolos, por exemplo. É um tema muito familiar na cultura ocidental, deve haver dezenas de milhares de pinturas reproduzindo esta cena, esta ceia.
 
Aqui vão quatro delas.
 
Leonardo da Vinci:


Tintoretto:


Ugolino da Siena:


Salvador Dalí:



Eu não acho que estas quatro pinturas tenham o mesmo conteúdo. Que produzam a mesma resposta estética – em mim, ou em qualquer pessoa. O que cada uma delas nos diz é muito diferente. As associações de idéias e até mesmo a resposta emotiva, afetiva, provocada por cada uma é muito diferente.
 
O tema das quatro pinturas é o mesmo: é a ceia de Jesus com seus apóstolos. O tema é sempre exterior à obra: ele desencadeia a criação da obra, está presente em cada momento de sua criação, mas é exterior a ela.  
 
Essas quatro pinturas têm conteúdos diferentes porque a forma, ou seja, aquilo que somos capazes de enxergar no quadro, é diferente em cada caso.
 
O conteúdo, como eu o percebo e o sinto quando leio, vejo filmes, olho quadros, etc., é uma espécie de corrente eletromagnética (perdoem a metáfora tosca) que vibra entre a obra e a minha mente.
 
Como dizia a imortal definição do mestre Damon Knight: “Um conto não são aquelas páginas impressas, é o que acontece em sua mente quando você lê o que está escrito nelas.”
 
E que já adaptei assim:



 
Vendo as coisas dessa maneira, fica difícil a gente separar o conteúdo da forma. Seria, como numa comparação famosa (não lembro agora quem disse isso) tentar ver a dança sem o dançarino. A dança não existe sem aquele dançarino; o conteúdo não existe sem aquela forma.
 
Livros com o mesmo tema, escritos por diferentes escritores, acabam tendo necessariamente conteúdos muito distintos. Basta comparar, num exemplo mais que conhecido, Os Sertões de Euclides da Cunha e A Guerra do Fim do Mundo de Mario Vargas Llosa. 
 
Este meu ponto de vista não é uma teoria: é uma coisa para uso próprio, mas que pode ser útil para alguém mais. É uma espécie de guia-mapa que me ajuda a navegar por entre livros, filmes, canções e tudo o mais.
 
Faço um certo esforço, toda vez, para me livrar da noção persistente de que toda obra de arte tem um conteúdo que é algo pronto e previamente definido, guardado dentro da obra. E que a forma se encarregar de transmitir, revelar, entregar esse conteúdo ao leitor (etc.).
 
Essa noção dá origem àqueles questionários com que a gente começa a se acostumar desde a infância, a adolescência, os trabalhos escolares: “Qual é a mensagem do filme?... O que foi que o autor quis dizer com este poema?...”  Perguntas que deixam implícita a existência de uma resposta certa, uma resposta já pronta, e cabe ao aluno deduzir ou adivinhar qual é.
 
Como se o conteúdo, até por essa conotação material da própria palavra, fosse algo embrulhado e encaixotado para ser entregue ao consumidor. E cada comprador receberia uma caixa igual.
 
Vejo o conteúdo (se temos mesmo que usar esta palavra) como um resultado, ligeiramente diferente em cada leitor, e até mesmo em cada leitura do mesmo leitor. O resultado, numa primeira etapa, de tudo que a forma fez com o tema ou conjunto de temas utilizados; e, numa segunda etapa, de como aquele primeiro resultado foi percebido e interpretado pelo leitor.
 
Claro que diferentes críticos darão diferentes pesos seja às intenções do autor seja às interpretações dos públicos variados. Todo autor é cheio de intenções!  O importante é reconhecer que não há um conteúdo já-pronto, à espera de ser decodificado: há um conjunto de estímulos variados (verbais, visuais, etc.) que sofrerá inúmeras decodificações diferentes e produzirá, em cada pessoa, um conteúdo diferente.
 
Sempre dentro (o bom senso nos indica) das possibilidades colocadas pelo livro ou filme, pela forma daquela obra.
 
Ninguém poderá dizer que o conteúdo de Dom Casmurro é a evolução da espécie humana, desde os antropóides pré-históricos até o homem de hoje e o homem do futuro.
 
Muitos críticos, por exemplo, veem no livro A Náusea  de Jean-Paul Sartre um romance pessimista, sombrio, que afirma a falta de sentido da existência humana. 

Eu vejo nele outro conteúdo: uma afirmação otimista da falta de sentido, a priori, do Universo e da humanidade, e em consequência disto a nossa enorme e vertiginosa liberdade de inventar o sentido que quisermos para tudo isto.
 
Quem produz o conteúdo do Universo somos nós, e nossa única limitação é termos que usar o que o Universo nos oferece, ou seja, a forma do Universo. O qual, como dizia Sir James Jeans, “não se parece com um mecanismo, e sim com um pensamento”.
 






quinta-feira, 18 de setembro de 2025

5199) Os hermetismos pascoais (18.9.2025)




Eu tinha pensado em publicar aqui uma daquelas crônicas-obituários, mas dei uma olhada na página do blog e me deu um arrepio ao ver como esses necrológios estão se enfileirando. Vôte. Daqui a pouco vou ficar sem outro assunto senão me despedir dos amigos e das pessoas que mais admiro. 
 
Me vieram à mente as vozes de Jessier Quirino e Jorge Filó: “A morte é um doido limpando mato”. É a sabedoria visual dos cantadores de viola, capazes de criar, em uma linha, um cartum inesquecível. Dê uma foice e uma instrução a um doido, e ele vai sair cortando o que aparece pela frente, seja touceira de urtiga ou o galho da roseira. 
 
Por falar nisso, passei recentemente uma madrugada assistindo clipes de vídeo e de áudio com as performances musicais de Hermeto Paschoal. Eu só, não: eu e a torcida do Treze. (Não boto “eu e a torcida do Flamengo” porque esta anda bastante alegrinha, e o momento é de certa melancolia.) 
 
O primeiro show de Hermeto Paschoal que eu assisti foi ali por volta de 1979 ou 1980, quando eu morava em Salvador. Algum produtor inspirado pelas musas trouxe para o palco do Teatro Castro Alves ele e Sivuca, só os dois, sem banda (“sem outros músicos atrapalhando”, como dizia um amigo meu de maus-bofes). Foi um diálogo bate-rebate, um pingue-pongue, um barra-a-barra, os dois se divertindo pra valer, tocando juntos e separados. 



(Hermeto e Sivuca) 

 
Separados no berço, disse alguém na época.  Dois sanfoneiros albinos parecem uma dupla de personagens inventada por Salman Rushdie ou João Ubaldo Ribeiro, que são chegados a um “realismo histérico”. Não importa. Um era paraibano, o outro alagoano, mas era como se alguém tivesse preparado uma fórmula mágica e pingado em dois tubos-de-ensaio diferentes, deixando maturar ali durante algumas décadas para ver os resultados. 
 
Em todo caso, não é Sivuca a figura com quem geralmente me ocorre comparar Hermeto, e sim com outro companheiro seu de geração, o baiano Tom Zé, que vi há poucas semanas no Circo Voador. 
 
Tom Zé é poucos meses mais novo que Hermeto (os dois são de 1936). As trajetórias dos dois são muito diferentes, mas como eu os acompanho há seis décadas sempre percebi alguns pontos em comum. Os principais são: erudição, experimentalismo-lúdico e pés no chão. 
 
Primeiro, a erudição. Músico erudito, no meu dicionário pessoal, é músico que sabe ler e escrever partitura. Não importa se é pianista da sinfônica de Berlim ou trombonista da orquestra-de-frevo da Bomba do Hemetério. Para mim, que olhando no papel não distingo um dó de um ré, ele é erudito. É alfabetizado, e eu não. 



(partitura de Hermeto) 

 
Claro que não basta isso, mas isso pesa. A música é uma língua estrangeira: a notação musical, a linguagem musical, as noções estabelecidas de harmonia, ritmo, contagem de compassos, modulações e o escambau...  Tudo isto é um idioma secreto que eles compartilham e nós espiamos pelo lado de fora. 
 
Vemos os resultados e podemos apreciá-los: qualquer pessoa mediana pode sentir a beleza de um quarteto de Mozart, mesmo que não saiba os nomes das notas que estão sendo tocadas. Mas uma coisa é reconhecer a beleza (ou a mera complexidade) quando a vemos, e outra coisa é ser capaz de reproduzi-la. 
 
Digo isto porque grande parte do respeito que um músico como Hermeto desperta lá fora do Brasil (onde chegava sem ninguém saber quem era ele) vem da percepção imediata, com quinze minutos de show no palco, de que “aquele cara sabe do que está falando”. Ele não era um mero talento bruto, primitivo, “uma força da natureza” – algo também importante. Era um cara que tinha domínio sobre essa língua universal, a linguagem-escrita da música. 



 
E aí me refiro a uma coisa importante na vida artística (como na vida em geral), que é o respeito entre seus pares. Ser respeitado pelas pessoas que praticam aquilo. Pode até ser que o público em geral, o público parecido comigo, esteja vendo o show e remungue: “Que som complicado, não estou entendendo nada”. Mas o músico profissional que está de pé ao meu lado, lata de cerveja em punho, fala baixinho: “Cara, esse sujeito é muito bom.”  E isso pesa. 
 
Ser erudito parece um pouco com ser rico. Que graça tem ser rico sozinho?!  E Hermeto tinha um aspecto formador, distributivo, de canalizar essa riqueza teórico-prática e passá-la adiante. Formou gerações de músicos. 
 
A erudição não salva ninguém. Na música, na literatura, na filosofia, onde quer que seja. O sujeito pode saber de cor todos os clássicos e todos os Manuais de Escrita Criativa disponíveis no mercado, mas isso não garante que seja capaz de produzir uma crônica que se aproveite. 
 
Aí entra um aspecto desconcertante que Hermeto tinha, o tal “experimentalismo lúdico”. Aquilo que faz o músico de concerto dar um passo adiante na direção do desconcerto. Uma curiosidade incessante de inventar formas novas, redescobrir formas esquecidas, fazer algo que nunca foi feito, aproximar coisas que estavam em universos separados... É para isso que serve a erudição. Tem muito erudito que se refestela no conforto, na repetição, mas essa técnica toda que acumulou poderia também lhe servir de estímulo para aventurar-se no desconhecido, mas com fundamento, com base, com um GPS auditivo que o mantenha na rota. 
 
E experimentar de maneira lúdica – brincando, divertindo-se, desafiando a si mesmo e aos outros, jogando na mesa pequenas provocações criativas, despertando os sonolentos, chacoalhando os rotineiros... Experimentar com prazer. Não o prazer egoísta de quem tenta deixar os outros do lado de fora, mas o prazer de abrir um novo espaço e tentar puxar alguém para dentro. 




Tem uma anedota que contam de Hermeto, com várias versões. Numa delas ele estava executando um número com sua banda e a certa altura um músico tinha a incumbência de soltar moedas numa bacia de metal. Alguém da platéia reagiu: “Ei, eu vim aqui para ouvir música, isso não é música!...”  Hermeto, ao piano, mandou o músico jogar outra moeda, ouviu o “plin!...”, e tocou o mesmíssimo som numa tecla do piano: “É música, sim.” 
 
Isso quer dizer que qualquer barulho, qualquer som  é uma nota musical? Não. Uma nota musical é a depuração de um som, a destilação, a purificação de um som num conjunto de vibrações alinhadas entre si. A nota musical é o tipo de som mais puro que existe. A nota musical está para o som assim como o vidro está para a areia. 
 
Hermeto não disse isto, quem está dizendo sou eu, todo animadinho com meu boné de teórico na cabeça. E isso só está me vindo à mente porque ele mandou o músico jogar uma moeda na bacia. 
 
Joguem moedas na bacia, que o músico está precisando. 
 
Botem notas na bandeja, porque os cantadores ao pé-da-parede estão precisando. Criar o que não existe também é trabalho. 
 
E isso nos traz ao terceiro elemento que está na obra (e acho que na vida) de Hermeto: pés no chão. Parecia ser o sujeito menos hermético do mundo, um camarada simples, sem pose. Não precisava chamar a atenção de ninguém – a natureza já tinha se encarregado disso. A pose, em si, não desmerece nem desvaloriza um artista, mas tem gente que recorre à pose por mera insegurança íntima, por mera necessidade ansiosa de imaginar-se superior; e o sujeito entra numa sala como se fosse um boneco do carnaval de Olinda. Não precisa. 
 
O famoso “passeio na rua” em que Hermeto arrebanhava uma platéia inteira para sair do teatro atrás dele e dar a volta ao quarteirão era a sua versão pessoal (uma versão pés-no-chão, uma versão desconstrutora!) desse carisma de liderança, de flautista-de-Hamelin, de líder capaz de conduzir multidões. Bora sair, bora dar uma volta na calçada, bora chamar a atenção do povo, bora botar o povo pra dançar, os “pobe” tão voltando do trabalho, todo mundo cansado, nem jantou ainda, aí eles veem a gente tocando e vêm atrás, dançam um tiquinho, o caba se distrai, volta pra casa mais leve, dá um cheiro na mulher, dá um cheiro nos menino. Agora pronto, vamos voltar pro teatro, que minha bolsa ficou lá.  
 

(Hermeto e banda)
 
 
 
 
 




 


 

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

5198) Atirem no pianista (11.9.2025)



 
O circuito « Estação Net » (em Botafogo, no Rio de Janeiro) está exibindo até o próximo dia 17 de setembro uma retrospectiva da obra de François Truffaut, num total de 23 filmes de longa e curta metragem. Estou aproveitando para ver e rever alguns deles.
 
 
Um antigo clichê do filme de faroeste é o confronto armado em pleno salloon, com mocinhos e bandidos sacando as armas, as coristas fugindo numa revoada de saias e de rendas... e o pianista se agachando por trás do piano.
 
Quem não lembra do cinéfilo Belchior cantando:
 
Eu sou apenas um rapaz latino-americano
sem dinheiro no banco...
Por favor, não saque a arma no “salloon”:
eu sou apenas o cantor...
 
A canção é de 1976, época de ditadura e de guerrilha, e esse verso era lido por muita gente como: “Eu não faço da parte da luta armada, me deixem em paz, estou só cantando canções de rádio”.



 

O segundo filme de François Truffaut, Tirez sur le pianiste (1960) é a história de um músico mais perdido do que pianista em tiroteio. Charles Aznavour faz “Charlie”, pianista de um daqueles enfumaçados bares parisienses. Ele mora com um irmão adolescente, Fido, e tem dois outros irmãos metidos com assaltos e roubos. O filme começa quando os conflitos deles com alguns mafiosos vazam para dentro da vida de Charlie, que é introvertido, suave, quer apenas viver em paz.
 
Uma boa parte do cinema de Truffaut (e de seus colegas da Nouvelle Vague) transcorre na zona cinzenta entre a lei e o crime. Fossem filmes feitos aqui, alguém invocaria sem demora o “jeitinho brasileiro” para justificar as acrobacias morais dos personagens que praticam o delito, a bravata armada, a contravenção, a esperteza, a coerção ameaçadora, o pequeno furto, o pequeno assédio.
 
Atirem no Pianista parece existir no mesmo universo de filmes como Bande À Part (1964, Jean-Luc Godard): a mesma narrativa propositalmente desconjuntada (para o horror dos autores de “Manual do Roteiro”), os mesmos protagonistas amorais, disponíveis, um tanto simpáticos, não tão inteligentes quanto pensam ser. São os mesmos crimes desnecessários, planejados como uma fantasia de adolescente, executados sem crueldade, e até com certa excitação lúdica. E acabam resultando em mortes reais.
 
São uma versão light, uma versão pop do absurdo sombrio de O Estrangeiro (1942) de Albert Camus, outro admirador dos romances policiais noir norte-americanos.

Os intelectuais franceses tinham uma fascinação pelo gênero policial noir, fosse nos filmes B em preto-e-branco ou nos romances de bolso. Boris Vian chegou a virar “Vernon Sullivan” para escrever Vou Cuspir No Seu Túmulo (1946), uma espécie de fanfic sob pseudônimo.




 Era um verdadeiro parque-de-diversões, para os cultores do existencialismo e do absurdo, essa literatura de personagens meio sonâmbulos, morando em cortiços e pardieiros, bebendo, usando drogas, fazendo sexo sem vontade, cultivando paixões incoerentes. Homens e mulheres sem ideologia, sem leitura, que não conseguem se ajustar nem se rebelar. O crime, quando finalmente acontece, não justifica nada, e basta-se a si mesmo.
 
Nos filmes de Truffaut, esses jovens se rebelam contra os mesmos moedores-de-carne: o Estado, a Burguesia, a Igreja, a Polícia, a Família, a Escola. O crime e a arte serviam como dois túneis de escape dessa prisão. Godard dizia que seus personagens eram “filhos de Marx e da Coca-Cola”, e pode-se dizer também que eram netos de André Breton e primos de Bonnie e Clyde.
 
Atirem no Pianista é livremente adaptado de um romance de David Goodis (1917-1967), um autor bastante conhecido no Brasil. Seus livros sombrios, doloridamente humanos, cheios de mulheres fatais e homens explosivos, foram publicados nos anos 1950-60 pelas Edições de Ouro: Paixão Criminosa, Viúva de Um Vivo, O Ladrão, Crepúsculo Violento, etc.
 
Meus preferidos são Fogo na Carne I1957) e A Mulher de Cassidy (1951).


 

 
Goodis teve muitos livros adaptados para o cinema. Além do Atirem no Pianista de Truffaut, há dois filmes bem conhecidos: em Dark Passage (Delmer Daves, 1947), Humphrey Bogart é um fugitivo da cadeia que, ajudado por Lauren Bacall, faz uma cirurgia plástica para não ser reconhecido, e tenta provar sua inocência do crime que lhe atribuem; e A Lua na Sarjeta (Jean-Jacques Beneix, 1983), com Gérard Depardieu e Nastassia Kinski, foi um projeto ambicioso mutilado pelos produtores.
 
Personagens de filmes assim vivem o tempo todo bordeando a tragédia. Lá pelo meio de Atirem No Pianista, um flash-back nos informa que Charlie era um pianista clássico, de concerto, mas ficou seriamente abalado pelo suicídio da esposa, e acabou se afastando das salas de concerto.
 
Uma garçonete do bar onde ganha a vida, Lena (Marie Dubois), decide recuperá-lo. Lena é uma daquelas personagens que podem ser chamadas “A Mulher Vital” – o oposto da “Mulher Fatal” que só provoca paixões e desgraças. 

As mulheres vitais são essas mulheres metade resolutas, metade ingênuas, que arranjam os namorados mais improváveis e dizem a todo mundo: “Ele é um cara bacana, tudo que ele precisa é uma mulher que organize a vida dele.”



(Marie Dubois e Charles Aznavour)

 
Não sei se é o machismo residual na alma de quem escreve, ou se é a fatalidade estatística, mas mulheres assim, nos filmes, estão condenadas a uma morte trágica nos últimos dez minutos.
 
E Charlie volta, no fim do filme, para onde? Para o piano, para o teclado, talvez o único lugar  onde ele tem alguma noção do que está fazendo e algum controle sobre o resultado.
 
Como dizia o cinéfilo Bob Dylan, no poema “11 Outlined Epitaphs” (1964):
 
(...)
existe um filme chamado
Atirem no Pianista
em que a última frase diz
“música, cara, isso é tudo que conta”
é uma frase religiosa
lá fora, soam os carrilhões
e eles ainda
estão soando.
(trad. BT)
 
Ou, mais uma vez, como avisava o nosso Belchior:
 
Mas se depois de cantar
você ainda quiser me atirar
mate-me logo à tarde, às três
que à noite tenho um compromisso e não posso faltar
por causa de vocês...
 
Atirem no pianista – mas errem, porque o show não pode parar.
 


(David Goodis ao piano)
 


 
 





sexta-feira, 5 de setembro de 2025

5197) Silvio Tendler, 1950-2025 (5.9.2025)



 
O cinema brasileiro perdeu hoje um diretor que dedicou sua vida inteira ao documentário e construiu com sua obra “uma sala por onde todo mundo tem que passar”, como dizia um amigo meu. 
 
Não conheço a maior parte da obra de Silvio Tendler, que é numerosa. Suas compilações sobre a história do Brasil, enfocando Juscelino Kubitschek, João Goulart, Milton Santos, Glauber Rocha, Josué de Castro, etc., são registros preciosos não apenas da nossa História mas da maneira de abordá-la. 
 
A maneira de abordá-la!  Quanta tinta tem sido gasta na tentativa de equacionar esse problema.   
 
Silvio, que não cheguei a conhecer pessoalmente, foi um dos entrevistados da série televisiva A Persistência da Memória de Paola Vieira (Canal Curta, 2023), em cujo roteiro colaborei. A série aborda o fenômeno “memória” de vários ângulos; um deles é a reconstrução da memória pessoal e coletiva através do cinema, especialmente do documentário. 
 
Aqui:
https://canalcurta.tv.br/series/a-persist%C3%AAncia-da-mem%C3%B3ria
 
Peço licença a minha diretora e à Luni Produções para transcrever aqui alguns trechos das respostas de Silvio, quando entrevistado em 2021. O cinema chamado de “documentário” é algo menos imparcial e menos objetivo do que vulgarmente se entende por aí afora. A palavra “documento” é uma palavra enganosa: sugere a existência de uma verdade que ninguém ousaria contestar, algo objetivo, invulnerável à crítica. Isso não existe. 




Cada “documentarista” cria sua própria verdade. É um documento? É, mas é como se uma pessoa pegasse um retângulo de papel e desenhasse ali uma carteira-de-identidade, desenhando a própria foto, a própria impressão digital, as próprias informações, e depois assinasse com sua própria assinatura. 
 
Dizia Silvio, a certa altura: 
 
São coisas que você vai guardando da infância, da adolescência... E aí, quando você vai fazer cinema, você vê com muito mais simpatia, então eu acho que esse desejo que a gente tem, de contar histórias, está profundamente ligado às lembranças da infância. Eu acho que memória é aquilo que a gente quer lembrar, né? Você tem também uma lembrança oculta que você não quer contar. Você sabe coisas de você que você não revela pra ninguém: é só tua memória oculta, a tua lembrança que você guarda só pra você mesmo, e se te perguntarem você vai negar de pés juntos até a morte – mas você sabe da existência daquela memória. Acho que memória é isso, memória é desejo. Eu olho muito do ponto de vista da história, a memória não como âncora, mas como bússola. 
 
A “pessoalidade” (o contrário de “impessoalidade”) que orienta o documentário é exemplificada por Silvio com uma memória de sua própria infância, memória criadora de um vínculo emocional que acabou, muitos anos depois, direcionando seu trabalho como cineasta. 
 
Eu fui fazer [um filme] usando JK por uma lembrança de infância. Eu tinha dez anos de idade, em 1960, estava no carro com meu pai ali no recém construído Aterro do Flamengo. No final, já, do governo JK, o Rio de Janeiro estava deixando de ser a capital, estava se transformando em [Estado da] Guanabara. E um dia nós estávamos indo para a Zona Sul vindo do centro, para casa, para Copacabana, e meu pai emparelhou com um carro (...) e eu olhei para o carro ao lado e era o JK, o Juscelino Kubitschek, aí eu olhei e abri a janela pra ver o Presidente. E ele me viu, viu que eu estava olhando pra ele, ele abriu a janela e deu aquele sorrisinho dele, e me cumprimentou com aquele aceno clássico. A criança nunca mais esquece isso, essa é a coisa que você nunca mais esquece. E isso está na raiz de um filme político, que é Os Anos JK (1980). 
 
Pode soar parecido com o narcisismo e o umbiguismo que hoje vigoram nas redes sociais, em que o Eu é sempre o centro de tudo. O Eu, no entanto, é o mais frágil dos centros. É “o centro que não consegue se sustentar”, no dizer do poeta Yeats. O que mais rapidamente desmorona no sumidouro da inexistência (ou no da insignificância, que é maior e mais fundo). Não importa: o Eu é tudo que cada um de nós possui, e no caso de quem faz algum tipo de arte é o ponto para onde convergem (para onde parecem convergir) todas as linhas do mundo.  



Um artista, e ainda mais um documentarista de cinema, tem uma percepção mais vasta do quanto a História é um oceano onde bóia o torrão de sal do Eu antes que se dissolva. E sabe o quanto são significativos, para as pessoas comuns, esses contatos de raspão com a História, com o mundo das Pessoas Importantes. O mundo dos “olimpianos”, como dizia Edgar Morin, aqueles de quem ouvimos falar diariamente, mas que sabemos existir num universo paralelo a que dificilmente teremos acesso. 
 
E tentamos compensar isso com esses momentos breves: o autógrafo do autor best-seller, a selfie com o astro pop.  Nesse momento, o fã anônimo se sente existir pela primeira vez no “mundo de verdade”, o mundo das pessoas famosas que aparecem na TV e nas revistas. 
 
Para uns, o mundo do Glamour. Para outros, o mundo do Poder. 
 
E a verdade é que no momento da filmagem (inclusive da entrevista filmada) e principalmente no momento da montagem (ou da “edição”, como está se dizendo agora) o Documentarista é um deus-pequenino manipulando as figuras históricas como se fossem action figures de seu jogo pessoal. 
 
O conceito de documentário tem fronteiras distantes, inquietantes, movediças; é uma espécie de “Área X” onde quem penetra volta transformado.  E essas fronteiras não são um marco de cimento no meio de uma imensa pradaria deserta. São como aquela fronteira Brasil/Uruguai bem no meio de uma cidade super movimentada, uma calçada fica num país e a calçada em frente já está no outro. 




Fazer documentário envolve uma porção de gente identificando material, preservando, restaurando, indexando, acessando, escolhendo, reeditando, reinterpretando, refazendo. Uma cadeia de pessoas que em geral trabalham silenciosamente, anonimamente, à revelia umas das outras, às vezes separadas por intervalos de milhares de quilômetros ou de dezenas de anos. 
 
Olha, esse trabalho é fundamental, essas pessoas apaixonadas por fotogramas, que adoram o cheiro de acetato, de ácido acético, né? São maravilhosas, né? Eu tenho o orgulho e a honra de ter começado talvez com o mais brilhante deles, que foi o Chico Moreira. Ele começou comigo no Anos JK, ele era um estudante de cinema da UFF e aí eu fui trabalhar na Embrafilme, dirigia um programa chamado “Coisas Nossas” e me deram o Chico como assistente. Aí, durante a realização desse programa, eu percebi que ele conhecia muito mais cinema do que eu, ele era um apaixonado por cinema, ele ia todas as noites ao cinema, conhecia todos os filmes, tinha uma coleção de lentes, coleção de revistas, etc. Aí quando eu comecei a fazer o som do JK, a colecionar aquele material na Cinemateca do MAM, o Cosme Alves Neto me convidou para organizar o arquivo do MAM e eu falei, “Cosme, não, eu vou botar na mão da pessoa que mais entende disso, não sou eu, é o Chico”. Aí o Cosme ficou chateado, achou que era mentira, que eu não estava querendo pegar o trabalho, mas o Chico aceitou e foi longe, continuou nessa carreira, fez curso no exterior, foi pra FIAF [Federação Internacional de Arquivos de Filmes] e tal...  Então eu acho que ele é o primeiro grande conservador do cinema brasileiro. Depois a Cinemateca Brasileira organizou isso também, se equipou, conseguiu equipamentos e profissionais muito bons, tem o João Sócrates, que hoje mora em Londres, que também organizou essas técnicas para você recuperar e preservar acervos... Você tinha em Curitiba o Valêncio Xavier, com essa gama de pessoas apaixonadas por cinema... Você tem a Myrna Brandão e o marido dela aqui no Rio de Janeiro, que também começaram a salvar filmes... A Alice Andrade, que salvou o acervo do Joaquim Pedro, você tem a Paloma Rocha que salvou o acervo do Glauber, e a Maria Hirszman que salvou o acervo do Leon, né?  
 
É uma conspiração de pessoas que habitam porões com ar condicionado e salas escuras. O documentário – e aqui penso no “documentário na mão de quem monta”, mais do que “na mão de quem filma” – sobrevive por essa guilda de gente para quem o cheiro de vinagre é carregado de poesia. 




Mal comparando, a montagem de documentários a partir de material de arquivo (material antigo, já existente, não filmado pelo mesmo diretor) é uma espécie de quebra-cabeças. No joguinho de quebra-cabeças, ou puzzle, temos que encaixar peças umas nas outras a partir de dois critérios: 1) As peças precisam se encaixar fisicamente (as curvas das bordas precisam coincidir com exatidão); 2) Depois de encaixadas, as peças precisam reproduzir um desenho, que o jogador vai descobrindo aos poucos (ou já vem proposto na própria caixa do brinquedo). 
 
No documentário, é preciso haver esse encaixe no corte, na passagem de uma imagem para a seguinte (por corte seco, fusão, escurecimento, etc.). Mas a figura que vai ser revelada no final é uma criação do documentarista. Não estava prevista em cada peça isolada. É como se as peças do puzzle estivessem todas em branco, e à medida que as encaixasse uma na outra ele fosse pintando um quadro. Uma Obra.  
 
Dizia Silvio, lembrando um ensaio famoso de Walter Benjamin: 
 
São duas questões diferentes: o excesso de informação, e a permanência. O Benjamin, quando escreveu A Obra de Arte na Época da sua Reprodutibilidade Técnica ele estava tirando a aura do cinema como objeto único. Hoje a coisa se inverteu. O cinema é objeto único, porque apesar de você ter inúmeras cópias, você não se dispersa na quantidade de informação que você recebe. Você assiste um filme inteiro, e o filme transmite uma idéia de começo, meio e fim. Você tem ali uma continuidade. Ao contrário do que há no “zap” e todas essas outras informações que circulam por todos os meios: elas são fragmentadas, elas são dispersas, então você recebe tanta massa de informação por dia que no final do dia você não lembra quem te mandou o quê... Essa informação se perde porque teu cérebro não tem a capacidade de armazenar toda essa informação que a gente recebe. Agora – o “objeto único” tem. Então, quando você quer falar de uma Era, você não cita um filmete que você recebeu por zap, que você não lembra nem onde ele está. Você cita um filme que você assistiu e que vai te falar daquele momento. 
 
O filme-pronto se salva porque tem começo, meio e fim. Tem um fio de pensamento costurando tudo, e é esse fio que o salva. Tem uma mente ordenadora por dentro de todos aqueles fragmentos. E o resto que fica fora do filme é apenas uma farofa de grãos de imagem.