É um meme que circula por aí há muito tempo, e cada ver
que emerge na tela eu solto uma gargalhada. O texto é em inglês. Alguém aplica
uma prova para crianças, com problemas simples de Matemática.
O problema destacado na foto diz:
Jane tem 12 lápis, e Kim tem 7 lápis. Quantos lápis Susan tem a mais do
que Kim?
E no espaço para a resposta a criança escreveu:
Quem é Susan?
Este pequeno episódio gera tantas idéias que chega dá uma
vertigem.
A primeira coisa que me ocorre é: a resposta da criança
foi considerada certa? A criança perdeu o ponto? Sei de muitos colégios, e já
vi muitos exemplos, em que uma criança questiona uma pergunta-de-prova. Questiona
de uma maneira totalmente aceitável, mas perde o ponto e ganha uma repreensão.
(O que, no-fundo-no-fundo, é muito mais educativo do que
passar-lhe a mão na trunfa e proclamá-la inteligentinha. A punição por
questionar a autoridade avisa: “Filhota, o mundo funciona assim, caia na
estrada e perigas ver.”)
A segunda coisa é a pena que eu tenho da professora que
elaborou a prova. Esse texto deve ter sido preparado tarde da noite, após um
dia estafante, um jantar conflituoso ou às pressas, uma pilha de provas para
corrigir, outra prova para preparar, e chega um momento em que as perguntas
envolvem tantas “Susans” e “Marys” e o escambau... Não há como não errar, e
como não ter pena de quem erra.
A terceira coisa é a quebra existencialista. A criança
está crescendo, aprendendo a ler, a escrever, a fazer contas, e é nesta fase
que começa a ser-lhe vendido, em suaves e eternas prestações, o enorme Falso Bilhete
Premiado da Loteria que é a entrada no mundo adulto. “Estude, pra se formar,
arranjar um bom emprego, ganhar dinheiro e casar.” E a venda desse bilhete
depende terrivelmente da idéia de que a vida é bela, o mundo é justo, o país
vai pra frente, a felicidade é para todos, a honestidade é recompensada...
Enfim: é uma cartela inteira de bilhetes que a criança
está comprando com seu esforço.
E de repente, no meio daquilo, aparece o equivalente à
cara de um palhaço estirando a língua, botando os polegares nos ouvidos e
agitando os dedos. Tem um erro na prova. A realidade está bugada. O mundo é
falso. Os professores erram. Os padres pecam. Os jornalistas mentem. A polícia
comete crimes.
Quem é Susan?
Esta Susan invisível e intrusa é o sexto lado do Pentágono,
a terceira margem do rio? Algo que não podia existir, mas está ali?
Por trás de uma contazinha aritmética inofensiva (12 – 7
= 5) foi introduzida uma serpente daninha e perniciosa no Éden da Matemática: o
elemento humano. Enquanto se tratasse apenas de Jane e de Kim, que por
definição já faziam parte do problema, tudo se resumia a fazer as contas, de
forma impessoal e não-envolvida. Você tem tantos, e você tem tantos. Mas de
repente aparece um nome não previsto na equação. Um elemento humano intruso,
não-convidado, que não estava na ficha técnica do mundo.
Os problemas escolares de Matemática são assim: não
admitem o elemento humano, que está ali só para ilustração. “Joãozinho comprou 50 melancias na feira,
mas no trajeto perdeu 8; quantas melancias Joãozinho trouxe para casa?...”
Ninguém ousará perguntar: “Mas para que Joãozinho queria tantas melancias? E ele
estava sozinho? Ele trouxe as melancias num carrinho, num táxi, num
cesto?...” Essas questões são proibidas.
A única função da existência do hipotético Joãozinho é ajudar a entender que 50
– 8 – 42.
Quem é Susan?
Susan é um clinâmen, um salto quântico inesperado, uma
mutação não prevista. Alguém que não estava nos cálculos mas de repente
irrompeu problema adentro, estraçalhando tudo com sua existência intrusa.
É o “J. Pinto Fernandes” que não estava na história mas
chega de repente e arrebata consigo a sapeca Lili, no poema de Carlos Drummond
(“Quadrilha”).
Ou então é alguém parente do sujeito que vai passando na
rua e alguém lhe grita: “Manuel, tua mulher está passando mal na tua casa em
Niterói!...” e ele dispara na carreira, pega um táxi, e quando está no meio da
ponte pensa consigo: “Mas... espere aí... eu não me chamo Manuel, eu sou
solteiro, e eu não moro em Niterói!...”.
Georges Perec (a quem devo a dica do conceito de clinâmen, já comentado aqui no blog)
dizia que o uso de uma “contrainte”
na literatura, ou seja, o uso de uma regra auto-imposta pelo autor, deve sempre
permitir uma exceção. O sujeito pode dizer: “Vou escrever um texto em que todas
as palavras começam pela letra C”, e ele deve ser capaz de obedecer a essa
regra; mas no final, depois do texto impecavelmente pronto, ele deve (diz
Perec) inserir discretamente, sutilmente, uma palavrinha que não obedece à
regra. Uma exceção proposital, que ele poderia perfeitamente ter evitado. Por
que?
Veja aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/search/label/clin%C3%A2men
Respondo: para contaminar de realidade e de imprevisto
esse “constructo” artificial que é a literatura. Para contar (digamos,
hipoteticamente) a história completa da família Buendía, com seus prenomes
maniacamente repetidos, mas poder, a certa altura, dizer algo como:
Nesse instante, bateram na porta da frente, a avó Úrsula disse:
“Aureliano, tem gente batendo, vá ver quem é”. Aureliano abriu a porta para uma
moça loura, de olhos azuis. “Quem é a senhorita?”, perguntou. E ela disse: “Eu
sou Susan”.
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