Aqui no Brasil, Gilbert Keith Chesterton (1874-1936) foi
nos anos mais recentes abduzido por uma ideologia conservadora, estreita demais
para acomodar seu diâmetro e quebradiça demais para suportar seu peso.
Chesterton é o criador do Padre Brown, um dos grandes
detetives de todos os tempos. Ao padre poderia se aplicar com perfeição aquele
velho slogan do seriado radiofônico The Shadow,
de que Orson Welles fez parte, há quase um século: “Quem sabe o Mal que se
oculta no coração dos homens? O Sombra sabe!...”
O Padre Brown observa sem ilusões a comédia humana e a
tragédia humana. Conhece os cordéis invisíveis que atuam sobre o pensamento destes
homens e mulheres tão confortáveis no seu imaginário livre-arbítrio. Sabe que
toda pessoa é (no dizer de Olavo Bilac) “capaz de horrores e de ações
sublimes”. E age de acordo.
Leio o Padre Brown desde os doze ou treze anos. Comecei pelos
livrinhos de bolso da saudosa Coleção Tucano (Ed. Globo de Porto Alegre). São,
basicamente, cinco coletâneas de contos: A
Inocência do Padre Brown (1911), A
Sabedoria do Padre Brown (1914), A
Incredulidade do Padre Brown (1926), O
Segredo do Padre Brown (1927) e O
Escândalo do Padre Brown (1935).
São 49 contos ao todo. Pelo menos um terço deles pode
figurar com mérito em qualquer antologia dos melhores contos de mistério.
Incluí dois deles em minhas antologias Contos
Fantásticos no Labirinto de Borges, de 2005 (“A Honra de Israel Gow”) e Crimes Impossíveis, de 2021 (“A Maldição do Livro”).
Há uma série da TV inglesa adaptando as histórias do
Padre Brown, mas não me identifiquei muito. O ator escolhido é bom ator, mas
bonachão demais, gente-boa demais. Falta-lhe o que Jorge Luís Borges (um grande
admirador de Chesterton) chamaria de “fulgor satânico”, e que eu encontro, por
exemplo, nas feições e na atitude de Anthony Hopkins. Nele, sim, eu consigo
visualizar um Padre que, apesar de seu compromisso definitivo com o Bem, conhece
o Mal tanto quanto os criminosos que desmascara.
(Anthony Hopkins, em Dois Papas)
Brown vive a dualidade (e essa dualidade é a marca de
Chesterton, o rei do paradoxo) de conhecer o Mal por experiência espiritual
própria, se bem que não pela ação. Ele tem a palavra cristã de ética, empatia,
humanismo e perdão, mas olha seus criminosos não com os olhos de um santo, e sim com os olhos azuis e frios de um Hannibal Lecter.
Seu romance The
Napoleon of Notting Hill (1904) foi o primeiro a usar a data de “1984” para
projetar uma Distopia futura (ao que se diz, George Orwell ignorava este
detalhe). Seus escritos católicos tiveram grande influência. Tim Powers (autor
de The Anubis Gates, On Stranger Tides etc) indicava The Everlasting Man (1925) como um livro
que ajudou sua conversão ao catolicismo. Orthodoxy
(1908) tem, paralelo à sua argumentação metafísica, um capítulo (“The
Ethics of Elfland”) que é uma das melhores vindicações da literatura
imaginativa.
O Homem Que Era
Quinta-Feira (1908) é também, a seu modo, uma prefiguração do 1984 de Orwell – um homem é cooptado por
uma organização subversiva, apenas para descobrir que quem o recrutou é da
polícia. Diferentemente do que pode ocorrer com o livro de Orwell, cujo áspero realismo
convoca uma vinculação emocional por parte do leitor, esse tipo de spoiler em nada atenua o interesse
inesgotavelmente criativo do pesadelo de Chesterton (o subtítulo do romance é A Nightmare), nem o encanto da sua
Londres saturada do insólito, do exótico e do absurdo.
Chesterton é criticado porque escreveu “excessivamente”. O
auge de sua atividade ocorreu na imprensa londrina: não esqueçamos que em sua
época os jornais e revistas eram, tanto quanto os livros, um escoadouro para a
prosa de ficção. Romance, conto, poesia, ensaios, artigos, crônicas, polêmicas,
em tudo ele se metia e de tudo ele se saía bem, inclusive em suas pelejas
ideológicas (sempre elegantes e bem humoradas) contra autores tão talentosos
quanto ele, gente como Bernard Shaw ou H. G. Wells, situados mais à esquerda do
espectro político.
Conservador, religioso, tradicionalista; parece incrível,
mas GKC se sentiria perfeitamente à vontade no mundo de hoje, o mundo da
Internet e da conectividade. Mais do que qualquer outro de sua época ele se
integraria com perfeição não só no ambiente acalorado das redes sociais, mas no
estilo de escrita de cem anos depois.
Twitter, whatsapp, tik-tok, tudo isto ele tiraria de
letra. Era o rei do aforismo inesperado, da frase definitiva, da piada matadora,
do paradoxo desconcertante que inseria nos seus adversários o vírus fatal do esprit d’escalier. Em The Club of Queer Trades (1905) ele
inventa indivíduos com profissões excêntricas; um deles é alugado para tomar
parte (junto com seu “cliente”) em reuniões sociais onde lhe cabe dizer algo específico
para que o cliente o conteste com uma resposta esmagadora, sob uma trovoada de
risos.
Grandalhão, obeso, desarrumado, vestido de maneira pouco
convencional, Chesterton era tido como um excêntrico, mas acabava sendo o
centro de qualquer grupo de que fizesse parte. Foi homenageado por John Dickson
Carr, o grande inventor dos “crimes de quarto fechado”, que usou sua figura
para descrever o detetive Gideon Fell.
Neil Gaiman o trouxe para a série Sandman
no papel do personagem “Fiddler’s Green”.
(Em Sandman: Fiddler's Green e Rose Walker)
Todo crime engenhoso é descoberto, em última análise, por causa de
algum fato muito simples – um fato que em si não tem mistério algum. A
mistificação começa no ato de encobrir o crime, em conduzir a atenção das
pessoas para longe desse detalhe.
(“The Queer Feet”, trad. BT)
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