domingo, 15 de dezembro de 2024

5133) A estética do Rolando Lero (15.12.2024)




 
Umberto Eco, no ensaio “Elogio do Monte Cristo” (1984) (em Sobre os Espelhos e Outros Ensaios, Nova Fronteira, trad. Beatriz Borges) comenta a curiosa linguagem desenvolvida por autores de romances-folhetim do século 19, tomando Alexandre Dumas por exemplo típico. 
 
Dumas desenvolveu nesses romances uma maneira caudalosa de narrar, com um excesso de palavras, de descrições, de diálogos. Mas isso não se deve a uma riqueza verbal típica do Barroco renascentista de Rabelais ou do Barroco caribenho-moderno de Lezama Lima, nem do Barroco tecno-político de Thomas Pynchon, Neal Stephenson ou David Foster Wallace. 
 
A verbosidade de Dumas tinha outro formato. Ao invés de um excesso de informação, proporcionava a reiteração redundante de uma informação já transmitida ao leitor. 
 
Diz Umberto Eco, à pág. 141: 
 
Dumas escrevia assim por razões de dinheiro, recebia tanto por linha e precisava esticar. Sem contar que, enquanto escrevia a duas mãos o Monte Cristo, estava ao mesmo tempo redigindo La Dame de Montsoreau, Le Chevalier de Maison Rouge, Les Quarante-Cinq. (...)



(Auguste Maquet, em foto de "Nadar") 

 
É bom notar que a expressão acima “a duas mãos” seria, mais precisamente, “a quatro mãos”, porque Dumas escreveu muitas dessas obras, inclusive o Monte Cristo, em parceria com Auguste Maquet (1813-1888), a quem descrevia a ação e as peripécias das cenas futuras, deixando ao parceiro a tarefa de as transferir por extenso para a página. (A discussão sobre que trechos eram de um ou do outro é gigantesca.) 
 
Eis que assim se explicam aqueles que, em outra ocasião, chamei de “diálogos de empreitada”, onde os interlocutores, fazendo um parágrafo a cada fala, dizem-se durante uma ou duas páginas falas de puro relacionamento, como dois desocupados num elevador. (...)
 
Dumas faz isso em todos os seus livros. Eco transcreve um longo exemplo tirado de Os Três Mosqueteiros:
 
-- Não – disse d’Artagnan - , não, confesso-o, não foi o acaso que me pôs no vosso caminho; vi uma mulher bater à porta de um amigo meu...
--- De um amigo seu? – interrompeu Mme. Bonacieux.
-- Certamente, Aramis é um dos meus melhores amigos. 
-- Aramis? Que é isso? 
-- Ora! Quereis dizer-me que não conheceis Aramis? 
-- É a primeira vez que ouço pronunciar esse nome. 
-- Mas então é a primeira vez que vindes a esta casa? 
-- Certamente.
-- E não sabíeis que era habitada por um jovem? 
-- Não.
-- Por um mosqueteiro?
-- Realmente não.
-- Então não era ele que vínheis visitar? 
-- Nem por sonho. Como viu, a pessoa com quem falei é uma mulher. 
-- É verdade, mas essa mulher é uma amiga de Aramis. 
-- Nada sei sobre ela.
-- Mora com ele.
-- Isso não me diz respeito.
-- Mas quem é?
-- Oh! Este não é um segredo meu. (...) 



E nesse ritmo seguem-se páginas e mais páginas, pagas ao autor por linha, o que tem como consequência estética a criação de tais diálogos entrecortados, um ping-pong verbal que só de vez em quando reproduz a velocidade de uma conversa normal, e está ali apenas para encompridar conversa. 
 
As publicações populares pagavam por linha, mas já no século 20 esse critério evoluiu para número de palavras, ou por número de caracteres – medidas mais exatas. A cada sistema, correspondem técnicas específicas, como na piada do diálogo entre tradutores: 
 
Tradutor 1 – Como você traduz “again”?...
Tradutor 2 – Depende. Se me pagam por número de palavras, “outra vez”. Se pagam por número de caracteres, “novamente.



(Marlise Neyer)

 
Contratos altamente vantajosos eram firmados com os autores de maior sucesso. Marlise Meyer, no clássico Folhetim – Uma História (Companhia das Letras, 1996), observa:
 
Com o sucesso, Dumas assina com Le Siècle um contrato de colaboração exclusiva: 100 mil linhas por ano, a um franco e meio a linha. Para multiplicar o rendimento, Dumas encontra o diálogo monossilábico e introduz uma série de figurantes pouco loquazes. Donde, a partir de certo momento, precaução dos diretores de jornal: a linha tem de ser completa, e Dumas acaba matando vários personagens tornados inúteis. (pág. 61)
 
Umberto Eco confessa que por essas e outras teve que largar no meio uma encomenda da editora Einaudi para traduzir o Monte Cristo ao italiano, e pela primeira vez considerou a sério esses gigantescos diálogos enche-linguiça. O que fazer? Ser fiel ao original? Ser fiel ao leitor? 
 
Que deveria fazer o tradutor para responder a um desafio de tal espécie? Se traduz ao pé da letra, sua dignidade se rebela, a mão hesita em repetir sem motivo a mesma palavra, a mesma expressão pré-fabricada, poucas linhas depois; o tédio exigiria que pulasse, enxugasse, encurtasse. (p. 144) 
 
Surge a questão ética da fidelidade ao autor, mas neste ponto o escritor italiano invoca, com pragmatismo, a necessidade de saber quem é o autor, o que buscava com sua escrita, em que condições trabalhava, que tipo de concessões fazia, que tipo de novas concessões (desta vez ao tradutor) estaria disposto a fazer. 
 
Por acaso Dumas não era um autor que trabalhava em colaboração? E por que não, então, em colaboração com um seu tradutor cem anos depois? Dumas por acaso não era artesão pronto a modificar seu produto de acordo com as exigências do mercado? E se o mercado agora lhe pedisse uma história mais enxuta, não seria ele o primeiro a autorizar cortes, encurtamentos, elipses? (pág. 144)


 
(manuscrito de Alexandre Dumas)
 
 
 




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