sábado, 6 de abril de 2024

5049) A arte do conto policial (6.4.2024)



 
Tive uma idéia excelente para um conto policial. Eu sou, aliás, o rei das idéias.  Se fosse menos preguiçoso, poderia até ter chegado a ser o rei dos contos policiais, mas escrever, escrever mesmo, concretamente, é um trabalho braçal desnecessário. Muito mais agradável é ter uma idéia atrás da outra, sempre colocando uma pedra em cima da folha para que o vento não a leve, e seguindo adiante. Cada idéia da gente é uma folha. Basta abrir um arquivo, resumir a idéia, jogar um título, dar uma salvada rápida... A vida não foi feita para se perder tempo, nem o tempo foi feito para passar. A vida tem mais é que ser pra sempre. O tempo tem mais é que descansar.
 
A idéia é que um sujeito é encontrado morto em seu escritório. Um homem de certo poder político ou econômico, e tudo indica se tratar de um suicídio. Ele escreveu um bilhete e explodiu a cabeça com um tiro. A arma ainda está presa entre seus dedos imobilizados pela rigidez cadavérica. O detetive examina o bilhete, que diz algo como: “Lamento por todos, mas é o jeito”. 
 
Curiosamente, o bilhete do suicida está datilografado. Estranho, não? Se tem uma coisa em que um suicida geralmente capricha é esse recado final, que deve ser de autoria indiscutível. É aí que o contista precisa driblar as circunstâncias que ele mesmo preparou. 
 
O bilhete tem que ser datilografado, senão não tem história. Suponhamos então que o falecido era idoso, tinha um princípio de Parkinson ou equivalente, a mão tremia muito, e toda sua comunicação por escrito era feita à máquina. O leitor sagaz fareja aí uma preparação qualquer, mas leitores lebres precisam ter paciência com autores tartarugas. 



O detalhe é que a história se passa num mundo pré-computador, num mundo em que um sujeito com alguma grana teria ao seu dispor uma máquina de escrever elétrica. E ele tem uma, justamente por causa do Parkinson (o teclado é mais sensível – não precisa percutir a tecla, basta encostar). 
 
Essas máquinas elétricas tinham dois tipos de fita: a de algodão (mais barata) e a de polietileno. A de algodão rendia mais. Tal como as fitas das velhas máquinas mecânicas, a “Olivetti”, a “Remington”, era um algodão embebido em tinta que admitia várias “passadas”, observando que a cada passada a tinta diminuiria. 



(Fita de polietileno para máquina-de-escrever elétrica)


Já a fita de polietileno, acondicionada num cartucho, era uma faixa negra e estreita, em direção única, onde o martelinho de cada letra cortava o formato exato, colando aquela letrinha negra no papel, e voltava ao repouso enquanto a fita se movia meio milímetro de lado e aguardava a próxima martelada. 
 
Acho que não é preciso mais. Este conto devia ter sido escrito quando essas coisas eram novas. Tudo tem que ser escrito enquanto as coisas são novas. Quando a gente se dá conta, as coisas envelheceram mais rápido do que nós. A gente planeja, e fica tão orgulhoso de finalmente ter planejado alguma idéia engenhosa, mas aí tudo começa a se afundar no oceano pastoso das Coisas Que Não São Mais Assim. Afundam, e se nos apegarmos a elas, afundaremos junto. Uma injustiça com as coisas que eram reais quando nós éramos jovens. 
 
Agora, não, há uma proliferação injusta e afrontosa de novas coisas e nova gente nos empurrando para o fundo do palco, assumindo as luzes, tratando gente como nós como se fôssemos teias-de-aranha. E perguntando, com a arrogância dos desinformados: “O que é máquina-de-escrever elétrica? O que é liquid-paper? O que é orelhão? O que é telex? O que é laquê? O que é combinação? O que é rirri? O que é cabriolé?  O que é lábaro? O que é roscofe?”. 





Voltemos ao mundo das idéias, paraíso onde tudo brilha e nada perece. 
 
A idéia era que extraindo o cartucho de fita de polietileno, onde cada letra percute uma vez apenas, seria possível reconstituir em ordem reversa todas as palavras que tinham sido datilografadas naquela máquina. E assim o detetive descobre que dois bilhetes de suicida haviam sido escritos: o verdadeiro (que foi destruído), e o falso, que foi encontrado junto ao corpo. Não houve assassinato. Foi suicídio mesmo. O que houve foi que alguém descobriu o corpo, leu o bilhete (que o denunciava, ou o prejudicava de alguma forma, não importa, invento depois), e resolveu destruí-lo e escrever o outro, anódino, insípido, não comprometedor, que foi descoberto. 




O detetive faz os malabarismos retóricos de costume, exibe a fita de polietileno, soletra de trás para diante o bilhete que foi encontrado, último texto escrito naquela máquina, e num lance teatral, faz o mesmo com o penúltimo, o bilhete autêntico que foi destruído. E aí é só inventar quem era a família, quais as brigas internas (toda família de milionário tem brigas internas), os dramas da raça humana. Com um parágrafo final arrasador, digno de acompanhamento orquestral. 
 
É aí que o leitor moderno ergue a cabeça da página e pergunta, amuado: “Mas o que é polietileno?”. 
 
Mas agora sim!... E se a solução de um mistério detetivesco dependesse do criminoso (e o detetive, e o leitor, por tabela) entenderem a estrutura e o funcionamento de um candeeiro de querosene, ou de um alambique, ou de um moinho dágua? Quantas pessoas no mundo sabem como essas coisas funcionam? 



 
– Portanto, – diz o detetive, enquanto o falsificador, cabisbaixo, é levado em algemas para a gendarmeria local, – aproveitem o momento. Carpe diem. Escrevam sobre as coisas de hoje, antes que chegue o vendaval do Amanhã. O crime de vocês precisa de um pen-drive? Escrevam hoje – amanhã teremos o chip telepático. Escrevam hoje as suas histórias sobre essas novidades que nos parecem eternas: o tik-tok, o açaí com granola, o air-fryer, o podcast, a tatuagem, a dupla sertaneja. Parecem que vão ficar entre nós para todo o sempre? Tenho uma boa-má notícia: não vão. 
 
“Tudo passa. Só quem não passa, pelo que vejo, é a Seita dos Talibãs do Presente. Hoje em dia a gente não pode dizer, descuidadamente, “vou pegar um táxi” sem que algum espertinho erga o dedo bem satisfeito e corrija: “Um Uber!...”. 
 
São as mesmas pessoas que no meio de uma noitada ouvem a gente dizer: “Nos vemos amanhã”, e corrigem: “Amanhã, não – hoje!!! Já passou de meia-noite!!!”  E ainda apontam para o pulso, orgulhosas. 
 
“É um orgulho que até se justifica, porque essas pessoas vêm com o vendaval, com a folharada. São aquelas que têm a Engenhoca.16 mas a trocam imediatamente pela Engenhoca.17 mal ela desponta no mercado. E para elas, as dezessetes, tudo que for dezesseis é superado, anacrônico, desprezível. 
 
“Vieram com o vendaval, e (sejamos otimistas!) com o vendaval irão embora.” 
 







5 comentários:

Anônimo disse...

Bravo!

Lisandro Gaertner disse...

Genial! Tava pensando aqui e achei um subterfúgio divertido para se contar esse tipo de história num cenário atual (ops, já passou) ou mesmo futuro: criar uma divisão da polícia especializada em crimes de mídia morta.

Todos os casos que envolvem mídias antigas, de VHS e fitas de rolo a mimeógrafos e fanzines, passando por zip disks e laser discs, seriam passados a essa turma de detetives apaixonados pelo passado.

Daria uma série excelente ou, quem sabe, uma bela antologia. É o tipo de coisa que o Bruce Sterling, outro apaixonado por mídias mortas, iria adorar.

Braulio Tavares disse...

Ótima idéia, Lisandro, porque essas mídias são cada vez mais numerosas, há mil possibilidades de sacadas interessantes com pequenos detalhes. O(s) autor(es) teriam que conhecer bem os detalhes, e tb saber repassá-los com explicações nos próprios diálogos, partindo da premissa de que eles não são bem conhecidos pelo público em geral.

Paulo Rafael disse...

Gostei, e gostei da referência a GGM!

George dos Santos Pacheco disse...

Como você disse certa feita em um Festival de Inverno em Nova Friburgo, "ideias são artigos de luxo, se não as agarrarmos enquanto sobrevoam nossas cabeças, outros vêm e nos roubam". Parabéns!