Não sei muitas coisas a respeito do físico J. Robert
Oppenheimer, um dos criadores da bomba atômica. Mais da metade do que sei
aprendi ontem, assistindo o filme Oppenheimer
(2023) de Christopher Nolan, baseado numa biografia pesquisada durante décadas
(American Prometheus, 2005, de Kai
Bird e Martin J. Sherwin).
É um filme de três horas, muito bem dirigido, porque
mostra homens de paletó discutindo o tempo inteiro, e ainda por cima conta uma
história cujo final já sabemos: os cientistas conseguiram produzir duas bombas
atômicas, que foram jogadas sobre o Japão, acabando a guerra. E o filme prende
a nossa atenção.
Oppenheimer
fala de ciência e de guerra, mas fala principalmente de política. E de um lado
importante da política, a relação entre o Saber e o Poder, entre os que detêm o
conhecimento técnico-científico, e os que financiam esse conhecimento e decidem
como ele vai ser empregado.
São duas forças cegas, porque muitas vezes o Saber (Oppenheimer,
no filme) pensa que sabe tudo, e não sabe; e o Poder (Lewis Strauss, no filme) pensa
que pode tudo, e não pode. Os que melhor as utilizam são os mais conscientes
dessas limitações.
Os homens do poder (nesse contexto, os políticos e os
militares) precisam ganhar a guerra, e só podem ganhá-la se os cientistas
fabricarem a Bomba. E Oppenheimer é uma encarnação convincente do cientista
cujo primeiro compromisso é com a ciência, mas vê-se envolvido num jogo de moral
e ética cujas manobras ele não domina.
Oppenheimer tem opiniões políticas – como muitos jovens
de sua geração, leu livros de esquerda, interessou-se pelo comunismo, apoiou os
Republicanos durante a Guerra Civil Espanhola. Não era de modo algum um
apolítico: mas era despreparado para o varejo do poder, o toma-lá-dá-cá dos
políticos profissionais, as intrigas de bastidores, as conspirações e as
traições, as armações dos mais espertos contra os mais ingênuos.
Dias antes de Oppenheimer
eu estava revendo um bom filme de espionagem, Tinker Tailor Soldier Spy (2011, Tomas Alfredson), baseado no
romance de John Le Carré. A espionagem é, entre outras coisas, a arte de mentir
sem ser descoberto e de ouvir mentiras sem ser enganado. Todo mundo mente o
tempo todo.
O espião que havia em Los Alamos, no Projeto Manhattan,
era Klaus Fuchs, e ele só aparece de passagem. A verdadeira batalha de
espionagem se dá da parte de Lewis Strauss (Robert Downey Jr.) que se dedicou a
destruir a reputação de Oppenheimer, acusando-o de espião comunista e de passar
segredos para os russos.
(Robert Downey Jr., como Strauss, e Cillian Murphy,
como Oppenheimer)
Lewis Strauss está para Oppenheimer como Salieri estava
para Mozart no filme Amadeus. É um
indivíduo que publicamente admira o talento real do outro, mas na surdina faz o
que pode para destruí-lo, por uma combinação misteriosa de inveja,
ressentimento, vingança, ambição e sei lá o que mais. Robert Downey Jr., neste
papel, está fisicamente mais parecido com Sherlock Holmes do que quando fez Sherlock Holmes (2009, Guy Ritchie). Seu
personagem é um político ambicioso que abala de forma irremediável a carreira
de Oppenheimer, numa luta de egos que é um dos motores do filme.
Entre outras frentes, a luta se dá após o fim da Guerra,
em torno da fabricação da bomba de hidrogênio, chamada “a Super”: Oppenheimer
era contra (temendo consequências apocalípticas) e Strauss era a favor. Essa
discussão, aliás, está presente em um bom filme alemão, muito parecido com
Oppenheimer, e que está no Amazon Prime: Adventures of a
Mathematician (2020, Thor Klein), que conta a vida do matemático Stanislaw
Ulam, um dos cientistas presentes em Los Alamos.
Aqui:
https://www.imdb.com/title/tt6875374/?ref_=fn_al_tt_1
É um filme tecnicamente e comercialmente menos ambicioso
do que Oppenheimer, mas pertence a
essa mesma estirpe dos “filmes de cientistas e políticos, de paletó, discutindo
diante de um quadro negro”. E é também muito bom.
Richard Feynman, um dos meus cientistas preferidos,
estava lá também, e faz muitos comentários sobre Los Alamos (e alguns sobre
Oppenheimer) em seu livro de memórias Surely
You’re Joking, Mr. Feynman! (1985). Feynman foi para Los Alamos com cerca
de 25 anos; era um aluno brilhante, e se incorporou ao grupo dos físicos
teóricos.
Em seu livro, ele cita seu colega, o matemático Paul
Olum:
Quando fizerem um filme sobre isto aqui, vão mostrar um cara chegando
de Chicago para fazer um relatório sobre a Bomba e levar de volta aos homens
[da Universidade] de Princeton. Ele vai estar de terno e empunhando uma pasta e
tudo o mais – e em vez disso está você aqui, vestindo uma camisa suja e
explicando coisas para a gente, mesmo sendo uma questão tão séria e tão
dramática. (trad. BT)
Feynman narra alguns episódios pitorescos em que se
envolveu (tudo em que ele se envolve torna-se “um episódio pitoresco”) e a
certa altura descreve um fato que dá o que pensar.
Durante a fase final da II Guerra, os computadores
tiveram um avanço excepcional, e em Los Alamos a IBM ajudou os cientistas a
criar um sistema de máquinas calculadoras, necessário para testar numericamente
todas as reações possíveis na desintegração do átomo, em diferente hipóteses de
trabalho. Eram milhões de cálculos, em computadores muito rudimentares
comparados aos de hoje.
Feynman recebeu a função de treinar um grupo de rapazes
do Destacamento Especial de Engenharia. Eram rapazes brilhantes, recém-saídos
da “high school” e com talento para a engenharia. Mas eram muito jovens, e passavam
os dias perfurando cartões numéricos nas máquinas, e entregando os resultados,
num tédio mortal.
Ele viu que aquilo não ia dar certo e pediu a Oppenheimer
para explicar aos garotos (porque tudo ali era segredo de Estado) o que eles
estavam fazendo, para dar uma sacudida no grupo.
Oppenheimer foi falar com a Segurança e conseguiu uma permissão
especial para que eu explicasse aos rapazes o que estávamos fazendo. Fiz minha
palestra e eles se entusiasmaram. “Uau, estamos lutando na guerra! Agora tudo
faz sentido!” Agora estava claro o que aqueles números queriam dizer. Se a
pressão aumentasse muito, havia uma liberação maior de energia, etc. e tal. Eles
agora sabiam o que estavam fazendo!
Transformação completa! Eles começaram a inventar maneiras de executar
melhor aquele trabalho. Melhoraram o esquema. Trabalhavam de noite. Não
precisavam mais de supervisores, não precisavam de nada. Estavam entendendo
tudo; inventaram vários dos programas que passamos a usar.
E assim os meus rapazes tornaram-se úteis, e para isto bastou explicar
a eles o que estavam fazendo. O resultado é que, antes, eles tinham precisado
de nove meses para resolver três problemas, e nos três meses seguintes nós
resolvemos nove problemas, o que é quase dez vezes mais.
É um exemplo interessante de trabalho alienado em contraste
com trabalho onde existe uma motivação pessoal, íntima, do trabalhador. No
caso, o patriotismo (era preciso ganhar uma guerra) e o prazer que todo
cientista e todo engenheiro tem ao enfrentar um problema concreto e resolvê-lo.
E este é um dos pontos em que o Poder e o Saber se
conjugam de uma forma ameaçadora. Porque o Poder conhece bem esse fanatismo pelo
Saber que existe nos cientistas, principalmente quando jovens: a curiosidade
voraz de entender o mundo, de examinar dificuldades, propor explicações, testar
soluções... Dê-lhe um laboratório, equipamento, recursos e diga: “Quero
resultados.”
(Gary Oldman, como o presidente Truman)
Essa investimento maciço no Saber estava na raiz da Bomba
Atômica e depois (mesmo com a oposição de Oppenheimer e outros) da Bomba de
Hidrogênio – que é incrivelmente mais potente (dez mil vezes mais), e relativamente
muito mais barata, “a um custo de centavos por cada grama de explosivo, e não
centenas de dólares, como na bomba de fissão nuclear” (In Any Light: Scientists and the Decision to Build the Superbomb,
1952-1954, Peter Galison
e Barton Bernstein).
Ver aqui:
https://www.jstor.org/stable/27757627
Um comentário no IMDB (Internet Movie Data Base) faz um
lúcido comentário sobre a cegueira pessoal de Oppenheimer:
Ironicamente, apesar de ser um físico nuclear, alguém que naturalmente
tem um conhecimento amplo a respeito de reações nucleares em cadeia, um tema
recorrente no filme é que Oppenheimer não percebe a cadeia metafórica de
consequências deflagradas pelas suas ações. Ele inicia e mantém relações com
membros do Partido Comunista sem pensar no impacto futuro que isto pode ter na
sua carreira como funcionário do governo norte-americano; e ele constrói a
bomba atômica para derrotar o Eixo sem na verdade considerar os esmagadores
efeitos que virão depois, como a subsequente corrida armamentista nuclear entre
os EUA e a URSS. (Trad. BT)
Na queda-de-braço entre o Poder e o Saber, o Poder muitas
vezes aposta na sede de conhecimento dos cientistas, na sua capacidade quase
fanática de se concentrar num problema e não pensar em mais nada enquanto não o
resolver. Pode ser a Bomba Atômica. Pode ser a Cura do Câncer. Pode ser a
produção maciça de sistemas de Inteligência Artificial, de Fake News, de Deep
Fake, de armas poderosas onde está sendo feito (hoje, agora) um investimento
inédito de talento científico, recursos financeiros, e vontade política. Do
jeito que ficou o mundo, existe sempre uma Guerra Mundial acontecendo.
Um comentário:
Aqui vc tem o pensamento nuclear do outro lado da cortina: https://www.e-flux.com/notes/589795/another-end-of-the-world-is-possible
Pra vc da ficção científica, talvez não acrescente, mas seus leitores podem não conhecer o atomismo russo e outras explosões.
Essa filósofa é uma doçura, mal acreditei que ela escrevesse isso, mas ela não mente.
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