Rola pela web um meme com trechos de um programa de
Sílvio Santos onde as pessoas têm que sugerir letras para completar palavras num
painel, e ganhar prêmios. O apresentador pede sugestões, e aí vem um picotado
de respostas absurdas, que fazem a platéia gargalhar.
-- L de elefante!...
-- C de Sebastião!...
-- R de ervilha!...
E o pessoal rola de rir. Eu também acho graça; no meu
caso pelo inesperado da coisa, porque há uma fração de segundo entre o
enunciado da letra, em voz alta, e o enunciado da palavra; e a palavra sempre é
uma que eu menos esperava.
Na televisão a gente sempre acha que tudo é combinado, tudo é pegadinha. Mas, supondo que não seja uma encenação combinada... As pessoas devem ser precariamente alfabetizadas. Podemos
dar também o desconto do nervosismo. Estar sendo submetido publicamente a um
teste, principalmente na TV, é duro. A pessoa sabe que a família inteira está
assistindo, a vizinhança inteira, o Sistema Solar.
Guardei por muitos anos uma prova de quando eu tinha 8 ou
9 de idade, prova em que me perguntaram em que dia a América foi descoberta, e
em vez do dia 12 coloquei “24 de outubro” – que estava na minha cabeça, talvez,
por ser o aniversário do meu pai. E a professora botou “Certo” na minha
resposta!
Acho que ela corrigia essas coisas mecanicamente, de
noite, depois de tirar a mesa do jantar... Enfim. O analfabetismo não sacrifica
apenas os analfabetos, mas desgasta os alfabetizadores.
Mas nas três respostas que coloquei acima, eu percebo um
paralelismo. Posso estar “viajando”, mas tenho a sensação de que essas pessoas,
quando pensam nas palavras, não pensam em palavras escritas letra-a-letra,
pensam em palavras faladas
sílaba-a-sílaba.
Esta diferença é uma das distinções essenciais entre a
linguagem escrita e a linguagem falada. Talvez seja o hábito de escrever e
recitar versos metrificados, mas quando estou falando eu sinto que estou
pronunciando sílabas inteiras, nem me lembro que são (em geral) uma combinação
de vogais e consoantes. Nem me lembro de como se escreve aquilo. Só lembro na
hora de digitar no teclado ou de rabiscar com a caneta.
O homem que diz: “L de elefante” está dizendo algo que
corresponde à experiência dele com essa palavra, que pelo visto é apenas uma
experiência de ouvir e de dizer. (Pouco importa se ele assina o nome ou não, se
é capaz de ler uma placa ou não; o domínio da língua é sempre gradual e se
expande aos poucos. E nunca termina.)
Essa palavra é feita de três pequenas explosões sonoras: ele – fan – te. (Note-se que a primeira
pequena explosão envolve duas sílabas, e/le,
mas na cabeça desse cidadão elas parecem, plausivelmente, estar coladas e serem
uma coisa só: ele.
As letras servem para explicar, num código visual, como
deve ser a explosãozinha de cada sílaba. A outra sílaba é FAN? Então temos o “F”
para explicar que é preciso tocar o lábio inferior com os incisivos superiores,
o “A” para indicar qual é o som básico que a garganta deve modular, e o “N”
para indicar que esse som deve ser nasalizado. Três coisas para descrever uma.
Por este mesmo raciocínio, entendo a pessoa que disse: “C
de Sebastião”. E apois?! Sebastião não
começa com “sê”? E “ervilha” não começa com “err”?
Durante muitos anos li aqui e acolá referências à
personagem surrealista “Rrose Sélavy”,
criada por Marcel Duchamp e glosada por Robert Desnos. Esse “R” duplo no começo
do nome sempre me embatucou, mas debitei na mesma conta que já corria em nome
de Sir Andrew Ffoulkes, um dos heróis do romance Pimpinela Escarlate. Excentricidades européias!
Só algum tempo depois li uma interpretação que me clareou
tudo. O “R” duplo tinha a função de carregar ainda mais a pronúncia, porque o
sentido do trocadilho é dizer: “Éros
c’est la vie”. Eros é a vida.
Os surrealistas tinham, entre outras qualidades, um senso
de humor cortante, e um gozo inesgotável em saborear palavras. Desnos, em Corps et Biens (1930), enumera variações
trocadilhescas em torno dessa personagem erótica e viva. E diz a certa altura: “Rrose Sélavy connaît bien le marchand du sel”. Rrose Sélavy
conhece bem o vendedor de sal ? Pode ser, mas é desse modo que ele mascara
o nome “Marcel Duchamp”.
Uma brincadeira que pode parecer, aos de-fora da Tribo
Trocadilhesca, uma perda de tempo, ou um esnobismo intelectualóide. Não é. É o
prazer de brincar com as palavras, o mesmo que faz o cantor Xangai gracejar com
o nome dos amigos, e em suas conversas referir-se de vez em quando a “Ivanova
Vilanildo” ou “Virias Fatal”.
Voltando à ponta da meada: as palavras faladas não são
feitas de letras, elas são feitas de sons. Passamos dezenas de milhares de anos
usando as palavras como simples sons feitos com a boca e escutados com a
zurêia. A escrita só surgiu muito depois – e é limitada, incompleta, depende muito
da interpretação do leitor (o que pode ser uma vantagem, às vezes).
E a escrita não é uma transcrição da linguagem falada.
(Esta seria a “escrita fonética”). É outro conjunto de convenções, que corre em
paralelo; procura servir de mapa para a fala, que é o território. Ouvindo meus
rockzinhos na adolescência eu ficava besta em ver como os ingleses rimavam “girl” com “world” ou com “pearls”,
e mais: como essas grafias nada tinham a ver com o som gutural que essas
palavras têm na vida real – na fala.
Bob Dylan:
https://www.youtube.com/watch?v=jJ4QrBFVIBM
Uma coisa que acho legal no linguajar pop-escrito de hoje
em dia, em inglês, é o modo como o pessoal usa números e letras maiúsculas para
substituir sílabas.
“Nothing
Compares 2 U” = Nothing compares to you
“4ever”
= forever
“2NE1” =
“to anyone”
“INXS” = “in excess”
…e por aí vai. O que pode ser visto como a linguagem
falada invadindo domínios da linguagem escrita, forçando a existência de novas
grafias. Tal como acontece em nossas comunicações online, onde usamos “kd vc”,
“tb”, “rs rs rs”, “kkkkkkk”, “pqp”, etc.
Isso é escrever certo? É escrever errado? A Gramática
condena ou autoriza esse tipo de escrita? Eu acho que não cabe à Gramática
condenar nem autorizar: cabe a ela examinar, entender como funciona, descrever
seu funcionamento e registrar: “É fato. Está acontecendo.”
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