Há filmes que eram muito famosos no tempo em que eu era
cineclubista, em Campina Grande, mas tinha menos de 18 anos e não conseguia
vê-los. Claro que de vez em quando dava um drible-de-corpo nos fiscais do
Juizado de Menores, e foi assim que vi minha inesquecível Viridiana. Outras vezes, era vergonhosamente interpelado e mandado
de volta para a Praça da Bandeira, onde ficava esperando a sessão terminar e os
colegas mais velhos (ou mais sortudos) saírem pra contar o filme.
Compus uma lista, com o título “Fichas Que Não Caíram”, e
olhe, passou-se meio século e tem vários que ainda não assisti.
Uma dessas fichas caiu agora, porque acabei vendo O Sol Por Testemunha (“Plein Soleil”,
1960), de René Clément. É de um romance de Patricia Highsmith, filmado mais de
uma vez, a mais recente com Matt Damon e Jude Law nos papéis principais. São
dois rapazes norte-americanos passeando pela Europa. Jovens, bonitões, da mesma idade, do mesmo tipo
físico, amigões de farras e de estrepolias – só que um é milionário, e o outro
é pobre.
(Maurice Ronet e Alain Delon)
A certa altura, o pobre mata o milionário, durante um
passeio de barco, e passa a usar as roupas dele, ocupar os apartamentos dele, assinar
os cheques dele, num jogo interessante de dupla identidade, porque a toda hora
ele está cruzando com pessoas que conheciam os dois, e troca de identidade num
piscar de olhos, conforme a necessidade do momento.
Esse pobretão é Tom Ripley, que depois voltaria a ser
protagonista de outras histórias de Patricia Highsmith. É um assassino frio e
charmoso, um cara “com papo de derrubar avião”, pragmático, ligadíssimo,
sedutor, e totalmente sem escrúpulos.
Foi este papel que projetou Alain Delon como ator, porque
ele parece ser exatamente isso que Tom Ripley é. Luchino Visconti, que nesse
mesmo ano o colocou como personagem central em Rocco e Seus Irmãos (1960), dizia: “Esse rapaz é bonito demais para
ser honesto”. E prova do talento de Delon é que seu personagem Rocco é ingênuo,
bom filho, bom irmão, rapaz-de-bem, e chega a ser irritantemente altruísta.
O maior spoiler
com relação a O Sol Por Testemunha é
a piada antiquíssima a respeito do título que o filme teria recebido em
Portugal: O Cadáver Estava Embaixo do
Barco.
Em todo caso, um dos aspectos fascinantes do filme é o
modo como ele faz o paralelismo entre dois caras que são praticamente a mesma
pessoa, só que um tem muito dinheiro, e o outro não tem nenhum. O rapaz rico é
Philippe Greenleaf (Maurice Ronet), e é um desses rapazes que nasceram nadando
num mar de dinheiro, e cuja vida adulta é uma diversão permanente, porque o
dinheiro abre todas as portas e fecha todas as bocas.
Tom Ripley é aquele personagem tão conhecido aqui no
Brasil: o rico que nasceu, por azar, no corpo de um pobre. É aquele cara que
tem gosto e apetite para as boas coisas da vida (bons hotéis, boas mesas, bons
vinhos, boas camas) mas não tem um centavo. Tanto não tem que o pai de Philippe
lhe oferece 5 mil dólares para ir buscar o filho na Europa e trazê-lo de volta
aos Estados Unidos, para assumir nos negócios da família.
A dinâmica entre os dois personagens me lembrou muito
outro filme que vi há pouco tempo: Aquele
Que Sabe Viver (1962, de Dino Risi), com Vittorio Gassman e Jean-Louis
Trintignant, nos papéis do rico e do pobre, respectivamente. Neste caso, são
dois rapazes que se conhecem por acaso e o rico (que vive numa atividade febril
de festas, passeios, jantares, namoros, etc.) convida o pobre para curtir a
vida durante um fim de semana.
É um desses enganosos “filmes onde nada acontece” e onde
coisas acontecem o tempo todo. Não há uma trama, não há isto que hoje chamam um
“arco narrativo”. É uma espécie de road-movie,
dois rapazes num carro esporte vagando pelas rodovias – indo visitar um amigo,
uma turma, curtir uma festa, curtir uma praia. Um roteiro que hoje seria
reprovado porque “falta conflito”, “falta jornada do herói”, “falta a pinça
narrativa do segundo ato” ou coisa parecida.
É interessante ver O
Sol Por Testemunha e Aquele Que Sabe
Viver lado a lado, pelas semelhanças e diferenças entre as duas duplas de
amigos. Em Il Sorpasso, não existe o
mesmo equilíbrio de personalidades em confronto. Bruno (Vittorio Gassman) não só
é rico como é calejado, arguto, tem malícia. Roberto (Jean-Louis Trintignant) é
tímido, livresco, ingênuo, e desde o primeiro momento deixa-se fascinar pelo
outro, por sua esperteza, por sua alegria fácil, sua disposição para curtir a boa vida.
(Jean-Louis Trintignant e Vittorio Gassman)
O filme de Dino Risi tem o título italiano de Il Sorpasso, e o título é uma das
melhores coisas do filme. “A Ultrapassagem”: algo que o personagem de Vittorio
Gassman faz o tempo todo com seu carrinho sem capota, acelerando ao máximo,
fazendo manobras arriscadas, colando no parachoque traseiro dos outros carros,
infernizando seu juízo. “Quem está aqui sou EU!... Deixem-me passar!...”
Hoje em dia, no submundo das celebridades eletrônicas, vemos
uma versão radical disso. Pessoas que abrem caminho a poder de dinheiro e de
desespero desejante. É o pessoal que “não pode perder” a festa que vai ter no
dia 10 na Bahia, nem o jantar que vai ter no dia 12 em Paris, nem o aniversário
de um amigão no dia 14 em Roma, e depois o show que vai fazer dia 17 no Rio,
seguido pela gravação do clip dia 18 em Manaus. E depois tem o II Fyre Festival,
numa ilha do Caribe... E por aí vai.
Os que são artistas precisam enfiar suas datas de
trabalho no meio dessa programação social intensa. Há outros que nem artistas
são – apenas têm dinheiro, e sentem a angústia de saber que quando morrerem,
mesmo aos 100 anos de idade, ainda deixarão algum dinheiro que não conseguiram
gastar.
Como o nosso “pleiba” mais emblemático, o autor-narrador
das Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881),
que gasta dinheiro, gasta mocidade, namora, desnamora, borboleteia de projeto
inacabado em projeto inacabado, e morre sozinho, certamente ainda com algum
dinheiro que não gastou. Também Brás Cubas sentia em si o fogo ambicioso da
juventude, como lembra de si mesmo no pós-morte:
Ao cabo, era um lindo garção, lindo e audaz, que entrava na vida de
botas e esporas, chicote na mão e sangue nas veias, cavalgando um corcel
nervoso, rijo, veloz, como o corcel das antigas baladas. (Cap. XIV)
Também Brás Cubas nasceu tendo à mão a varinha mágica do
dinheiro de família, aparentemente inesgotável, como as bolsas de moedas das Mil e Uma Noites:
Era meu o universo; mas, ai triste! Não o era de graça. Foi-me preciso
coligir dinheiro, multiplicá-lo, inventá-lo. Primeiro explorei as larguezas de
meu pai; ele dava-me tudo o que eu lhe pedia, sem repreensão, sem demora, sem frieza; dizia a todos que eu era rapaz e que ele o fora também. Mas a tal
extremo chegou o abuso, que ele restringiu um pouco as franquezas, depois mais,
depois mais. Então recorri a minha mãe, e induzi-a a desviar alguma cousa, que
me dava às escondidas. Era pouco; lancei mão de um recurso último: entrei a
sacar sobre a herança de meu pai, a assinar obrigações, que devia resgatar um
dia com usura. (Cap. XV)
A ultrapassagem é a imagem típica desse tipo de rapaz que
sempre consegue o que quer, e acha que basta querer uma coisa para ter direito
a ela. Seu movimento instintivo é mesmo o de ultrapassar, de não deixar que os
retardatários-sem-chance atrapalhem sua disparada rumo à vitória. Ele quer
chegar primeiro, ou no mínimo chegar logo. É aquele sujeito que “não aceita um
não como resposta”, que fura filas, que distribui “agrados” (gorjetas,
propinas). Ele acha que o mundo lhe deve tudo que ele resolveu desejar.
É curioso que este sentimento não seja exclusivo dos
ricos. O Cobrador, de Rubem Fonseca, é o pé-rapado que, de arma em punho, resolve
tomar na-marra tudo a que tem direito. Tudo que a “sociedade de consumo” lhe
oferece via propaganda, e lhe nega via exclusão de classe.
Esse impulso de velocidade, de impaciência social, faz
desses jovens tanto as futuras lideranças, quando têm pedigree (têm “berço”), quanto os futuros exércitos de
profissionais obcecados, quando (como Tom Ripley) são classe média e percebem
diante de si um longo caminho a percorrer.
Esse jogo febril de jovens se ultrapassando uns aos
outros está presente também num dos meus contos preferidos de James Joyce,
“After the Race” (Dublinenses, 1914),
sobre uma turma de quatro ou cinco rapazes (uns de família muito rica, outros nem
tanto) divertindo-se ao longo de um dia e uma noite, por ocasião de uma corrida
de automóveis. Diz Joyce: “O movimento
veloz pelo espaço produz uma sensação de euforia. O mesmo se dá com a
celebridade; o mesmo se dá com a posse de muito dinheiro”.
Nas últimas cenas de O
Sol Por Testemunha, Tom Ripley está na praia, curtindo a fortuna
recém-conquistada, e curtindo o suspense de se saber a um fio de linha do
desmascaramento. A mulher do restaurante praieiro se aproxima, pergunta se quer
uma comida, uma bebida... E ele, olhos semicerrados diante do sol:
-- Me sirva o melhor. O melhor.
Um comentário:
Excelente fio, Braulio.
(Minha lista de não-vistos inclui sobretudo "sucessos" de bilheteria, como New York, New York, Carruagens de Fogo, Borsalino, e por aí vai.)
Vi O Sol Por Testemunha antes da maioridade e mais tarde passei noites e noites com os livros da Patrícia Highsmith.
Vi algumas resenhas de Saltburn que tentam aproximar Oliver Quick de Ripley. A distância entre eles é enorme, e não só de estilo criminoso. Enquanto Ripley fascina vítimas e leitores, Quick faz joguinhos. Ripley quer ser outro, Quick quer o que ele não tem, e fim.
Como diversão, Saltburn (Prime) é ótimo. Quem sabe até amplia o fio comparativo de personagens que vc tão bem construiu.
Postar um comentário