1
Dona Graúda Ferreira, 58 anos, em Cajazeiras (Paraíba), está fazendo bolo para o jantar às quatro e meia da tarde de uma quinta-feira, quando recebe a visita de seu filho Vamberto, 29 anos, bancário, que divide apartamento com mais dois colegas da agência local. Vamberto faz os arrodeios de sempre, e depois explica que tomou a decisão de casar com sua recente namorada Arlene, 21 anos, por ter constatado que ela é a mulher de sua vida. Conta isso ao longo de meia hora enquanto a mãe bate claras em neve, unta a forma, fatia maçãs e tudo o mais. Terminada a declaração, que ela escuta em concentrado silêncio, ela limpa as mãos no avental e pergunta: “Já brigaram alguma vez?” Vamberto se empertiga, com todas as defesas em riste: “Claro que não! A gente dá muito certo um com o outro.” Ela abre a tampa do forno, coloca a forma lá dentro com todo cuidado, e enquanto procura a caixa de fósforos diz por cima do ombro: “Pegue uma briga com ela. Pra saber como ela briga.”
2
Gilbert Dickinson, 25 anos, inglês, soldado de infantaria do exército britânico na I Guerra Mundial, na batalha de Surmontès, no inverno, agachado e com água pela cintura, depois de dez horas seguidas de fuzilaria cerrada alemã, virou-se para o Sargento, desesperado, e disse: “Sargento... Quero ir embora daqui”, e o sargento disse: “É só ficar em pé”.
3
Eduardo Villaverde, carioca, 31 anos, num estado de exaltação emocional visível a uma quadra de distância, encontra num café o velho amigo Lourival Sabino, 44, e derrama-lhe em cima sua nova paixão arrebatadora, por Ingrid, uma loura enigmática, elusiva, misteriosa, uma Nadja bretoniana ou Maga cortazarista, com quem semanas atrás compartilhou uma única noite de sexo, drogas e rock-and-roll, finda a qual ele recorda, entre brumas matinais de pós-orgia, o recado de que “procurasse por ela em Copenhague”. Seguiram-se dias de paixão febril e de corridas atrás de passaporte, visto, bilhetes com conexão, reservas às pressas no primeiro Airbnb que apareceu, e a compra (ele abre o saco plástico e mostra) de um dicionário de bolso “Português-Dinamarquês, Dinamarquês-Português”, ao que o filosófico Lourival retruca: “Você já foi conferir naquela loja de chocolates da Visconde de Pirajá?...”
4
Dioclécio Ramos, 81 anos, desempregado, ex-funcionário público, ex-comerciante falido por juros bancários, viúvo por erro médico, presidiário por seis meses sob acusação de peculato com provas duvidosas e testemunhos de desafetos, vivendo no quarto dos fundos da casa do genro, foi abordado na rua por Ismael Cordeiro, 27 anos, militante partidário, que lhe enfiou na mão uma maçaroca de panfletos impressos a cores em papel cuchê, e o exortou a votar no candidato da vez, explicando que era pelo bem do Brasil, pela libertação do Brasil, pela possibilidade do Brasil realizar enfim seu destino manifesto, ao que Seu Dioclécio tirou da boca o cachimbo apagado e disse: “Enfie o seu Brasil no cu, começando por aquela parte mais fina.”
5
Genoveva Monteiro, "Vevinha", 19 anos, de Barra de Santa Rosa, filha de Dona Osminda, viúva, 58 anos, acabou se casando com Raimundo Berto, 30 anos, mecânico, um cara meio abrutalhado. Um mês depois de casada ela foi na casa da mãe e disse: “Mãe, todo fim de semana Raimundo sai pra beber, volta pra casa todo sujo, e quando eu reclamo ele me dá uma surra. O que é que eu faço?...”. A mãe tirou o cachimbo da boca e disse: “Proteja os dente”.
6
Lourival Araújo, 28 anos, estudante, recifense, torcedor do Náutico, amava esse clube como quem ama uma mulher tuberculosa, desesperando-se por ele, sofrendo na carne e no sangue cada derrota, bebendo rios de álcool a cada desclassificação, dando desgosto aos pais, dando trabalho aos amigos que pagavam Uber para levá-lo em casa (eram sempre motoristas igualmente alvirrubros, estoicamente compreensivos e solidários). Uma noite, depois de um empate sem gols nos Aflitos contra um Aparecidense desfalcado, ele sentou no bar de Misael, pediu uma garrafa de Fogo Paulista, serviu uma dose de três dedos e virou. Seu Donda, pai de Misael, estava lanchando na mesa ao lado e lhe mandou um olhar em diagonal, sabedor que era do drama do rapaz. (Seu Donda era Sport, e bem ou mal conseguia conciliar o sono à noite.) Criou coragem e disse: “Lourival, tu quer um conselho?...” O rapaz serviu-se de outra dose, ergueu o copo em saudação e respondeu: “Seu Donda, conselho é como esmola, a gente só dá a quem pede." E emborcou o copo.
Dona Graúda Ferreira, 58 anos, em Cajazeiras (Paraíba), está fazendo bolo para o jantar às quatro e meia da tarde de uma quinta-feira, quando recebe a visita de seu filho Vamberto, 29 anos, bancário, que divide apartamento com mais dois colegas da agência local. Vamberto faz os arrodeios de sempre, e depois explica que tomou a decisão de casar com sua recente namorada Arlene, 21 anos, por ter constatado que ela é a mulher de sua vida. Conta isso ao longo de meia hora enquanto a mãe bate claras em neve, unta a forma, fatia maçãs e tudo o mais. Terminada a declaração, que ela escuta em concentrado silêncio, ela limpa as mãos no avental e pergunta: “Já brigaram alguma vez?” Vamberto se empertiga, com todas as defesas em riste: “Claro que não! A gente dá muito certo um com o outro.” Ela abre a tampa do forno, coloca a forma lá dentro com todo cuidado, e enquanto procura a caixa de fósforos diz por cima do ombro: “Pegue uma briga com ela. Pra saber como ela briga.”
Gilbert Dickinson, 25 anos, inglês, soldado de infantaria do exército britânico na I Guerra Mundial, na batalha de Surmontès, no inverno, agachado e com água pela cintura, depois de dez horas seguidas de fuzilaria cerrada alemã, virou-se para o Sargento, desesperado, e disse: “Sargento... Quero ir embora daqui”, e o sargento disse: “É só ficar em pé”.
Eduardo Villaverde, carioca, 31 anos, num estado de exaltação emocional visível a uma quadra de distância, encontra num café o velho amigo Lourival Sabino, 44, e derrama-lhe em cima sua nova paixão arrebatadora, por Ingrid, uma loura enigmática, elusiva, misteriosa, uma Nadja bretoniana ou Maga cortazarista, com quem semanas atrás compartilhou uma única noite de sexo, drogas e rock-and-roll, finda a qual ele recorda, entre brumas matinais de pós-orgia, o recado de que “procurasse por ela em Copenhague”. Seguiram-se dias de paixão febril e de corridas atrás de passaporte, visto, bilhetes com conexão, reservas às pressas no primeiro Airbnb que apareceu, e a compra (ele abre o saco plástico e mostra) de um dicionário de bolso “Português-Dinamarquês, Dinamarquês-Português”, ao que o filosófico Lourival retruca: “Você já foi conferir naquela loja de chocolates da Visconde de Pirajá?...”
Dioclécio Ramos, 81 anos, desempregado, ex-funcionário público, ex-comerciante falido por juros bancários, viúvo por erro médico, presidiário por seis meses sob acusação de peculato com provas duvidosas e testemunhos de desafetos, vivendo no quarto dos fundos da casa do genro, foi abordado na rua por Ismael Cordeiro, 27 anos, militante partidário, que lhe enfiou na mão uma maçaroca de panfletos impressos a cores em papel cuchê, e o exortou a votar no candidato da vez, explicando que era pelo bem do Brasil, pela libertação do Brasil, pela possibilidade do Brasil realizar enfim seu destino manifesto, ao que Seu Dioclécio tirou da boca o cachimbo apagado e disse: “Enfie o seu Brasil no cu, começando por aquela parte mais fina.”
Genoveva Monteiro, "Vevinha", 19 anos, de Barra de Santa Rosa, filha de Dona Osminda, viúva, 58 anos, acabou se casando com Raimundo Berto, 30 anos, mecânico, um cara meio abrutalhado. Um mês depois de casada ela foi na casa da mãe e disse: “Mãe, todo fim de semana Raimundo sai pra beber, volta pra casa todo sujo, e quando eu reclamo ele me dá uma surra. O que é que eu faço?...”. A mãe tirou o cachimbo da boca e disse: “Proteja os dente”.
Lourival Araújo, 28 anos, estudante, recifense, torcedor do Náutico, amava esse clube como quem ama uma mulher tuberculosa, desesperando-se por ele, sofrendo na carne e no sangue cada derrota, bebendo rios de álcool a cada desclassificação, dando desgosto aos pais, dando trabalho aos amigos que pagavam Uber para levá-lo em casa (eram sempre motoristas igualmente alvirrubros, estoicamente compreensivos e solidários). Uma noite, depois de um empate sem gols nos Aflitos contra um Aparecidense desfalcado, ele sentou no bar de Misael, pediu uma garrafa de Fogo Paulista, serviu uma dose de três dedos e virou. Seu Donda, pai de Misael, estava lanchando na mesa ao lado e lhe mandou um olhar em diagonal, sabedor que era do drama do rapaz. (Seu Donda era Sport, e bem ou mal conseguia conciliar o sono à noite.) Criou coragem e disse: “Lourival, tu quer um conselho?...” O rapaz serviu-se de outra dose, ergueu o copo em saudação e respondeu: “Seu Donda, conselho é como esmola, a gente só dá a quem pede." E emborcou o copo.
3 comentários:
Excelente.
Torcer pelo Náutico, pelo Vasco ou pelo Botafogo da Paraíba é um ato de paixão desesperada e irreversível.
CLAP, CLAP, CLAP!
O Fraga indicou o seu blog e eu já adorei. Você escreve muito bem!
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