No mês de setembro completam-se 111 anos do nascimento de John Cage, o compositor mais fora-de-esquadro da música dos Estados Unidos. Chamado de gênio e de charlatão por muita gente. É o que acontece com muitos artistas de vanguarda que inventam um conceito de criação artística, aferram-se a ele com uma monomania quase psicótica, e acabam sendo compreendidos por um certo número de pessoas, em quantidade (e importância) suficientes para garantir a sobrevivência das suas obras.
Cage é visto como um dos integrantes do que alguns gozadores chamam “a turma do barulho”, compositores de formação erudita que utilizam métodos não-convencionais para produzir música. Instrumentos, notações, estruturas, tudo a serviço de composições que parecem querer, insistentemente, desmontar nosso conceito do que é música.
Perguntado num programa de TV se de fato fazia música, ele disse: “Sim. Eu considero que música é a produção de sons, então posso chamar de música isto que faço”.
Cage faz música experimental de muitos tipos. Um deles consiste em descobrir sonoridade e expressividade em sons de origem diferente e estrutura diferente do que se observa numa música orquestral comum.
Acho que é mais fácil entendê-lo quando pensamos nas experiências do nosso Hermeto Paschoal na música popular. O albino Hermeto toca chaleira, toca badalo de vaca, bota porco para roncar numa gravação, balança uma lata cheia de tampas de garrafa... É música? Eu acho que sim, porque, sendo músico popular, ele envolve tudo isso num colchão sonoro de música convencional, feita com teclados, saxofones, etc.
Em Hermeto, os sons não-convencionais passam como mero complemento da música dele. Uma música às vezes estranha, mas jazzística, meio erudita, meio popularzona, uma música que tudo recebe e tudo acolhe.
John Cage, não. Ele oferece ao ouvinte o som concreto, cru e cumulativo de campainhas, percussões aleatórias usando vidro e metal, água jorrando ou sendo chacoalhada, ruído de aparelhos culinários, rádio captando estática... Ele faz essa música propositalmente não-melódica, não-rítmica e não-harmônica (creio eu) não para agredir nossos ouvidos, mas para despertá-los.
A música que nós ouvimos (erudita ou popular) é feita de um repertório de sons muito vasto, os sons produzidos pelos instrumentos de uma orquestra, uma banda de rock, uma escola de samba, etc. Sua riqueza é espantosa, inesgotável, mas é um conjunto de timbres, fraseados melódicos, estrutura e cadências com as quais já nos acostumamos. Reagimos a ela como um cachorro reage a uma campainha. Fomos treinados para aceitá-la, e nossa balança de gosto/não-gosto funciona em torno do cardápio que ela oferece.
Mas... Basta ouvir meia hora de música oriental ou africana para perceber o quanto ignoramos e o quanto provavelmente estamos perdendo. Bastava ouvir mais, prestar atenção, ler um pouco a respeito, construir uma nova sensibilidade... Mas a verdade é que pouca gente tem tempo pra isso. Contenta-se com o que já conhece, e que não é pouco.
Cage é um artista provocativo, com muito da atitude dos artistas plásticos de vanguarda. Ele faz uma composição que consiste apenas de silêncio, o que equivale às telas em "Branco sobre branco" de Malévitch. Com um complemento: a peça 4’33” exige que o concertista se sente ao piano, mas sem tocar, e a peça sonora será composta pelos ruídos da plateia.
Todo o trabalho de Cage (incluindo livros, palestras, entrevistas) mostra os bastidores da música, a discussão do que constitui uma música, o limite entre a música na cabeça do compositor e o resultado final mostrado ao público. Em geral, essa discussão não nos interessa. Somo consumidores, somos ouvintes, queremos o resultado pronto. Não queremos participar da discussão criativa, queremos fruir uma criação e passar para a próxima.
Esse “queremos” é relativo, claro, porque milhares de pessoas (eu por exemplo) tem algum interesse por essas discussões. Não queremos só andar no carro, queremos saber como o motor funciona.
Daí que a língua inglesa tem um expressão-padrão para isso: “a poet’s poet” é um poeta que escreve para outros poetas, “a painter’s painter” é um pintor cuja obra interessa mais a outros pintores do que ao público, e assim por diante. Não tem nada demais nisso, e só mesmo o furor consumista e anti-intelectual de nossa época para considerá-lo uma forma de elitismo.
Em todo caso, Cage é abraçado e estudado não apenas por músicos eruditos. Roqueiros como Frank Zappa, Brian Eno, e outros tocam para multidões, fazem música dançante para balançar o esqueleto, mas gostam de refletir sobre a filosofia da composição, e de estudar em profundidade a matéria primas (o som e o silêncio) que estão manipulando, e os instrumentos que utilizam. E a obra de Cage é uma referência para eles.
No documentário John Cage: Journeys in Sound (2012) de Allan Miller e Paul Smaczny, Cage aparece em papos-cabeça com John Lennon e Yoko Ono; explicando sua obsessão por cogumelos comestíveis; compondo com o auxílio do I-Ching, o Livro das Mutações. É um experimentalista, um curioso com erudição, um cara que gosta – pra usar um clichê do momento – de “pensar fora da caixa”.
No programa de TV que aparece no documentário, Cage conta que às vezes o pai o levava para caçar no bosque, e os dois não conseguiam abater nenhuma caça para o jantar. Então o pai dizia: “Não faz mal, a gente sempre pode ir na cidade e comprar alguma coisa de verdade”. Os animais caçados pessoalmente são vistos como um substituto da comida “de verdade” – a industrializada, que se compra no supermercado.
Essa curiosa dicotomia está na raiz da música de Cage. Para ele, os sons de verdade, a música de verdade, são as sonoridades livres, selvagens e à solta que existem no mundo: barulho de chuva, de trânsito, de talher de metal em prato de louça, de porta rangendo, de vidro quebrando, de papel sendo amassado... E não a música radiofônica, feita como sonoridades industrializadas, codificadas, domesticadas, padronizadas... A comida-enlatada do som.
No mesmo programa de TV o apresentador previne Cage, antes do “concerto”, que algumas pessoas da platéia poderão rir durante os seus números “musicais”. Ele responde, tranquilo: “Tudo bem. Eu acho o riso melhor do que as lágrimas”.
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