A figura do doido é recorrente na obra de Guimarães Rosa,
mas talvez fosse melhor dizer de um jeito diferente. Não é o doido propriamente
dito, mas o personagem de comportamento amalucado. Não é o doido trancafiado no
Pinel ou na colônia. É aquele camarada, meio vagueante do juízo, parado no
ponto de ônibus, contando pra ninguém uma história que ninguém entende.
O “doido solto”, como se dizia em Campina – o indivíduo
que não vale a pena levar para o Manicômio, porque na verdade não é uma ameaça
a si mesmo nem a ninguém. Uma figura imprevisível, que à gente às vezes tolera,
mas com desconforto, porque sabe que de um instante para outro ele pode
aprontar um surrealismo qualquer.
Comentei dias atrás o conto “Darandina”, onde essa
dualidade é pretexto para Rosa contar a história divertida do sujeito que entra
no hospício, pede para ser internado alegando doidice, e, diante da negativa,
volta para a rua, sobe numa palmeiras e lá em cima tira toda a roupa, jogando-a
na multidão que se formou. Era doido ou não era?
Algo parecido se dá com o penúltimo conto do livro,
“Tarantão, meu patrão”, cujo narrador, conhecido por “Vagalume”, tem como
patrão um fazendeiro que anda meio destrambelhado do juízo. A família o
confinou na fazenda para esperar um médico, mas no abrir do conto o fazendeiro
– “Iô-João-de-Barros-Diniz-Robertes!” – já está montando a cavalo e partindo,
obrigando o pobre Vagalume a montar também e ir atrás.
O patrão está “sem
paletó, só o todo abotoado colete, sujas calças de brim sem cor, calçando um pé
de botina amarela, no outro pé a preta bota; e mais um colete, enfiado no
braço, falando que aquele era a sua toalha de se enxugar.” Mas sua demanda preocupa: ele diz a Vagalume
que está indo à procura do Magrinho para matá-lo. O Magrinho é o médico,
sobrinho-neto dele, que dias atrás lhe aplicou uma lavagem intestinal.
O patrão sai demente a cavalo, e Vagalume atrás, e ele alvoroça
tudo por onde passa, seja porque já o conhecem, seja porque seus modos chamam a
atenção. E ele vai convocando indivíduos para segui-lo. Faz gentilezas à mãe de
um, conclama outro, faz discursos, e aos poucos a sua cavalgada vai crescendo.
Que poder têm os doidos para atrair as pessoas? Não é
qualquer doido, é o doido eloquente, porque essa combinação de imprevisto e
veemência parece seduzir as pessoas que estão cochilando com a mesmice da vida.
E ele vai de lugarejo em lugarejo. Desmancha uma procissão jogando dinheiro pro
alto (“...a se curvar, o povo, em
gatinhas, para poderem catar prodigiosamente aquela porqueira imortal”). E o
séquito vai aumentando.
As aventuras do Patrão são variadas, e nas mãos de um
prosador com outro perfil renderia talvez um romance divertido como O Grande Mentecapto (1979) de Fernando
Sabino. Vagalume segue o patrão como Sancho seguia o Quixote, sempre de olho,
para que não se meta numa encrenca grossa. E ele também se entusiasma com o
inédito daquilo:
Todos vindos, entes, contentes, por algum calor de amor a esse velho. A
gente retumbava, avantes, a gente queria façanhas, na espraiança, nós
assoprados. A gente queria seguir o velho, por cima de quaisquer idéias. (p.
164)
O furor vingativo do velho não arrefeceu:
Ao que o velho sendo o que era por-todos, o que era no fechar o teatro.
“Vou ao demo!” bramava. “Mato o Magrinho, é hoje, mato e mato, mato, mato!” –
de seu sobrinho doutor, iroso não se olvidava. Súspe-te! (p. 164)
Vagalume cavalga ao lado dele, e o tropel compassado dos
cavalos vai fazendo brotar no texto a sugestão do título:
Me passei para o lado do velho, junto – tapatrão, tapatrão...
tarantão... tarantão... e ele me disse: nada. Seus olhos, o outro grosso azul,
certeiros, esses muito se mexiam. Me viu mil. “Vagalume!” – só, só, cá me
entendo, só de se relancear o olhar. “João é João, meu Patrão...” Aí; e –
“patrapão, tampantrão, tarantão…” (p. 164)
E assim segue a cavalgada, entre epopéias e onomatopéias,
o grupo aumentando, até Vagalume se dar o trabalho de listar os “combatentes”,
um prazer a que Riobaldo Tatarana se entrega várias vezes no Grande Sertão: Veredas:
E eu ali no mei. O um Vagalume, Dosmeuspés, o Sem-Medo, Curucutu,
Felpudo, Cheira-Céu, Jiló, Pé-de-Moleque, Barriga-Cheia, Corta-Pau, Rapa-pé, o
Bobo, o Gorro-Pintado, e o sem-nome nosso amigo.
E é essa “estranha cavalgada” que irrompe na casa do Magrinho,
o sobrinho-doutor. E vejam só – a casa está em festa! É o dia do batizado da
filha do Magrinho, e tudo ali é uma alegria só. Chega de repente esse Exército
Brancaleone, empoeirado, suado, em bater de cascos e tinir de esporas. No meio
a incerteza e da surpresa geral, o Patrão pede a palavra!
Todos, em roda de em grande roda, aparvoados mais, consentiram, já se
vê. Ah, e o Velho, meu Patrão para sempre, primeiro tossiu: bruba! – e se saiu,
foi por aí embora a fora, sincero de nada se entender, mas a voz
portentosamente, sem paradas nem definhezas, no ror e rolar das pedras. Era de
se suspender a cabeça. Me dava os fortes vigores, de chorar. Tive mais
lágrimas. Todos, também; eu acho. Mais sentidos, mais calados. O Velho, fogoso,
falava e falava. Diz-se que, o que falou, eram baboseiras, nada, idéias já
dissolvidas. O Velho só se crescia. Supremo sendo, as barbas secas, os
históricos dessa voz: e a cara daquele homem, que eu conhecia, que desconhecia.
(p. 166)
A festa termina assim em festa (Vagalume confirma: “Com alegria. Não houve demo. Não houve
mortes”) e o conto se instala numa outra vertente da obra de Rosa, não
muito comentada, mas presente. Como a define Paulo Rónai, em seu prefácio, “Os
Vastos Espaços”, ao livro de Rosa: “o
conflito esperado deixa de se cumprir”.
Rónai identifica essa tendência
dramática igualmente em “Famigerado”, “Os irmãos Dagobé”, “O Cavalo que Bebia
Cerveja”, “Luas-de-Mel” e “Darandina”.
Rosa é conhecido pelo sopro épico de suas batalhas de
jagunços, seja nos duelos homem-a-homem, seja nos combates tropa-a-tropa. Nestes
contos, no entanto, posteriores ao Grande
Sertão, emerge o outro lado – o Rosa diplomata, o Rosa conciliador e
negociante, o Rosa de sorriso zen-melífluo, o demarcador de fronteiras mutuamente concordadas, um homem com a
preocupação-de-ofício de agüar os conflitos antes que eles peguem fogo.
Em “Tarantão”, ficamos sem saber o que o Patrão queria de
fato – se ia mesmo matar o Magrinho e se comoveu ao ver o batizado – ou se tudo
aquilo era esperteza prévia para alvoroçar meio sertão e arrebanhar uma
“cruzada” de gente apanhada-a-laço. Mas tem quem possa sber o que um doido
pensa? Só se for doido também. Como o
autor do conto (controladamente, estudadamente, bonacheiramente) devia ser.
(O último curso deste ano; quem se interessar se apresse)
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