O clown
surrealista Salvador Dali estreou no cinema como parceiro de Luís Buñuel (Um Cão Andaluz, 1928; A Idade de Ouro, 1930). Os dois
brigaram, mas paralelamente a sua milionária carreira como pintor, Dalí
continuou fazendo breves incursões pelo cinema.
Uma obra curiosa, que está disponível no YouTube, é Impressions de L’Haute Mongolie (1975,
Salvador Dalí e José Montes-Baquer). É um média-metragem de cerca de 50 minutos
(parece que há uma versão mais longa nas cinematecas), narrando, com imagens produzidas
pelo pintor, uma excursão fantasiosa à Mongólia, uma Mongólia onírica, muito
diferente da Mongólia real.
Aqui: https://www.youtube.com/watch?v=ZJk-DzMvVzE&ab_channel=BreconWalsh
A premissa fantasiosa do enredo parte do quadro de
Vermeer A Carta. Nele, uma mulher de pé,
num pequeno aposento, lê uma carta, tendo ao fundo um quadro. A câmera explora
os detalhes da pintura enquanto Dali – no seu melhor estilo de voz bombástico-profético
– explica que este quadro encerra um mistério. Essa carta, na verdade, traz
para a mulher da pintura a notícia da existência de uma ilha misteriosa na Alta
Mongólia, ilha cuja localização está revelada precisamente no mapa que aparece
ao fundo. E o segredo principal desta ilha é que nela crescem cogumelos
alucinatórios enormes, que a expedição narrada por Dali se prepara para ir
buscar. É (diz ele) “um LSD sem LSD”.
Seguem-se imagens borradas, abstratas, fortemente
coloridas, saturadas de cor; Dali narra as justificações teóricas da viagem
(sempre num discurso alucinatório-pomposo) e por volta dos 25 minutos começam a
surgir as aeronaves de que ele se vale para o trajeto – trucagens meio
amadorísticas com pequenos objetos que lembram cápsulas espaciais.
O filme é bastante hábil em mostrar imagens coloridas e
abstratas enquanto Dali descreve as paisagens com tranquila e peremptória
subjetividade, quase como se estivesse lendo ali manchas de cartões Rorschach de
testes psicológicos. Ele mostra "falésias", “colinas”, “florestas”,
as areias brancas de uma praia que (segundo ele) não são mais do que milhares
de gigantescos cogumelos alucinógenos pulverizados.
A imagem não é das melhores (é um filme para TV, e a
cópia no YouTube parece ser tirada em VHS) mas nos permite ver exemplos do
famoso método da “paranóia-crítica” teorizado e praticado por Dali. Uma mesma
imagem pode ser vista de diferentes maneiras.
Dali e o diretor Montes-Baquer empregam as fusões e desfoques para fazer
transições lentas de uma imagem para outra, e, frequentemente, de imagens
abstratas para reproduções figurativas das cenas que a voz de Dali está
narrando. Como se aquele borrão de cores e formas fosse ganhando significado
pouco a pouco, pela imposição hipnótica da voz do narrador, que nos “ordena” o
que devemos ver, e logo em seguida a imagem lhe obedece.
Na sequência final, Dali traz o filme bruscamente para as
ruas da cidade (talvez Port Lligat, onde ele tinha sua casa e seu estúdio),
desfila pela rua com trajes extravagantes, parando o trânsito, varando o
empurra-empurra da multidão, seguido por manifestantes que conduzem faixas e
cartazes. Depois, todos pegam mangueiras e começam a lançar jatos de tinta
colorida sobre uma parede. A imprensa filma, fotografa. Dali empunha uma câmera
e filma também.
Pode ser um subgênero do Fantástico, ou do Insólito.
Posso chamá-lo de “As Expedições Mirabolantes”: histórias onde um grupo de
indivíduos parte de uma grande cidade rumo a um lugar remoto e obscuro, em busca
de um objetivo misterioso, ou improvável, ou fantasioso, ou irrelevante...
Um retrato mental e poetizado do sonho colonialista, só
que aqui visto pelos olhos, não dos homens ambiciosos de riqueza e poder, mas
do buscadores do insólito, do aventuresco, do imprevísivel.
Entram nessa faixa obras como Le Mont Analogue (René Daumal, 1952), Conversions (Harry Matthews, 1962), La Vie mode d’emploi (Georges Perec, 1978), bem como o filme A Montanha Sagrada (Alejandro
Jodorowski, 1973) e o romance brasileiro O
Púcaro Búlgaro (Campos de Carvalho, 1964).
Estas “expedições iniciáticas” são um capítulo peculiar
da literatura do Colonialismo. Não se voltam para a tarefa ufanista e
civilizatória do homem branco, seja para celebrá-la, como Kipling, seja para
mostrar, como Joseph Conrad, seu fracasso (ou sua verdadeira natureza). O livro
brasileiro, aliás, é uma sátira a essas empreitadas fantasiosas.
Julio Verne tem um papel intrigante neste processo. Por
um lado, é um cientista da era vitoriana (mesmo sendo francês), deslumbrado com
os desdobramentos da Revolução Industrial e o pipocar simultâneo de centenas de
descobertas científicas em seu tempo.
Por outro lado, é curioso ver como a obra de Verne é
insistentemente estudada, na França, em função de uma segunda leitura, uma
leitura ocultista, hermética, iniciática, em que as aventuras geográficas de
seus heróis são alegorias de aventuras espirituais de caráter místico. Ele
poderia ser, nesta leitura enviesada, agrupado junto aos demais autores das
“Expedições Revelatórias” em que europeus partem para terras distantes ou
imaginárias para elucidar questões enigmáticas, obsessivas ou meramente
absurdas.
Quando Salvador Dalí, em Impressões da Alta Mongólia, explica que foram a esse local exótico
em busca de cogumelos alucinógenos, ele expande a tradição de Daumal, e a
tradição de Raymond Roussel (Impressions
d’Afrique, 1910; Locus Solus,
1914), a quem seu filme é dedicado.
(Imagem de Raymond
Roussel no filme de Dali)
E ao mesmo tempo está expandindo, na direção da cultura
psicodélica e lisérgica dos anos 1970, o próprio Surrealismo francês do qual
surgiu.
É curioso que as pesquisas mentais de André Breton e dos
outros surrealistas tenham mantido sempre uma distância prudente em relação às
drogas. Sarane Alexandrian, em Le Surréalisme et le Rêve (Gallimard, 1974),
comenta:
Há portanto uma certa condenação da droga entre os surrealistas, baseada
na convicção de que um homem que a emprega não tem confiança verdadeira nas
generosas virtudes do surrealismo. (...) Os surrealistas não tecem louvores à
droga, mantêm distância em relação a ela, e preferem ver os drogados como
sonhadores mal sucedidos, que não conseguem sonhar senão sob o efeito de
produtos tóxicos, ainda que fosse abusivo interditar-lhes esse uso. (p. 162-165,
trad. BT)
O Surrealismo explodiu como movimento avassalador na
Paris da década de 1920, quando as drogas visionárias (não necessariamente
alucinógenas) eram o ópio, o láudano e o absinto.
William Burroughs, um filho bastardo do Surrealismo
francês com a ficção científica dos EUA (J. G. Ballard foi outro) rumou para a
América do Sul em busca do yagé, a
poção miraculosa propiciadora de visões. Essa peregrinação lhe rendeu um livro,
as Cartas do Yagé (L & PM, trad.
Bettina Becker).
Antonin Artaud, surrealista-raiz, foi igualmente para o
México em 1936 em busca do peiote, dos xamãs, do retorno ao inconsciente
coletivo. Uma viagem que décadas mais tarde ganharia uma versão popularizada e
transformada em best-seller por Carlos Castañeda.
A Mongólia de Salvador Dalí não é tão imaginária assim; é
uma Mongólia mental, uma Pasárgada alucinógena, um Eldorado do inconsciente. Um
permanente “convite à viagem” que a literatura, a poesia e o cinema de espírito
romântico, ou neuromântico, reiteradamente escutam e repetem, como se soubessem que a Verdade não está no centro, e sim nas periferias.
Nenhum comentário:
Postar um comentário