Este é o título curioso de um excelente estudo de Terry
Castle, The Female Thermometer: 18th
Century Culture and the Invention of the Uncanny (Oxford University Press,
1995), que eu tinha começado a ler anos atrás quando estava pesquisando para
minha antologia Freud e o Estranho
(Casa da Palavra, 2007) e agora peguei de novo até zerar o jogo.
Terry Castle é professora na Universidade de Stanford,
com livros que têm como foco a literatura inglesa do século 18. Ela afirma, com
bons argumentos, que embora Freud só tenha formalizado em 1919 o seu conceito
do Estranho (Unheimlich em alemão, Uncanny em inglês) essa idéia estava
impregnada na cultura e na literatura inglesa desde muito antes.
O século 18 foi um século interessante do ponto de vista
da literatura européia. Ainda hoje traduzimos e estudamos no Brasil os franceses,
os ingleses, os russos e os alemães do século 19; mas os anos 1700 na Inglaterra foram
um momento crucial na criação das técnicas narrativas de onde resultou o
romance moderno. Uma defesa bastante consistente dessa idéia está em A Ascensão do Romance (“The Rise of the
Novel: Studies in Defoe, Richardson and Fielding”, 1957) de Ian Watt
(Companhia das Letras).
Por outro lado, é também em grande parte o século da
Revolução Industrial, uma época de ciência triunfante não somente por fazer
descobertas conceituais, como as de Galileu e Newton, mas descobertas que
resultavam em aplicações prática imediatas, como a máquina a vapor.
O “Termômetro Feminino” era um gracejo, é claro, e isso
não o impede de refletir com clareza o espírito de sua época. Ele foi descrito
em 1754 num artigo por Bonnell Thornton, como “uma invenção para medir a exata
temperatura das paixões de uma dama.” Consistiria num tubo de vidro cheio de
uma mistura composta inclusive pelos “extratos destilados do amor de uma dama”.
Aplicado ao corpo de uma mulher, o líquido subiria ou desceria, como ocorre num
termômetro, ao longo de uma escala assim redigida:
Abandono Despudorado
Galanteria
Comportamento Relaxado
Inocentes Liberdades
Indiscrições
Inviolável Pudor
Brincadeiras assim já datavam de mais de meio século, diz
a autora, mas passavam agora a receber uma tintura de ciência popular, à medida
que o povo em geral se convencia de que instrumentos análogos funcionavam de
fato. O microscópio e o termômetro (diz ela) eram dois dos grandes triunfos
teóricos e tecnológicos da Nova Ciência. A escala Fahrenheit foi introduzida na
Europa em 1717, e depois as escalas Réaumur e Celsius, por volta de 1730-1740.
A linguagem dos “instrumentos medidores” estava em voga.
(Termômetros e
barômetros, c. 1710)
Ela cita (e ilustra) engenhocas análogas como o
“Barômetro Espiritual” que flutuava numa escala entre os extremos do PECADO e
da GRAÇA. Esta mentalidade se projetava inevitavelmente na literatura: em “O
Homem da Areia” (1816-17) de E. T. A. Hoffmann o vilão que atormenta o
personagem principal surge durante sua infância como “um vendedor ambulante de
barômetros e termômetros”, indicando uma espécie de “ciência gótica” que
resultará, mais adiante, no autômato de aparência feminina, Coppélia, pelo qual
o protagonista Nathanael irá se apaixonar.
Esses instrumentos, que reagiam de forma quase mágica às
mudanças observadas na natureza (temperatura, pressão, etc.) demonstravam
possuir uma qualidade feminina, passiva, responsiva. Diz Terry Castle:
A estranha mobilidade da vida íntima do barômetro era feminina, de
início; o novo objeto dava forma cômica às crenças tradicionais a respeito da
hipersensibilidade da mulher e suas irracionais “venetas” relativas ao sexo. Mas
a presença constante desses objetos na vida cotidiana – com suas respostas
dinâmicas aos estímulos do mundo – encorajaram uma universalização da
sensibilidade. Barômetros e termômetros externavam, por assim, dizer, o futuro
da psique. (pag. 42, trad. BT)
O livro de Terry Castle tem alguns temas centrais mas se
divide em capítulos sobre assuntos bem específicos. Um dos mais interessantes é
o capítulo 7, “The Carnivalization of Eighteenth-Century English Narrative”.
Depois de estudar nos capítulos anteriores os bailes de máscaras, a cultura do
travestismo e os personagens literários que se disfarçam usando roupas do sexo
oposto, ela faz um reconhecimento geral do terreno literário, comentando as
variadas circunstâncias em que a literatura dessa época abordou os bailes de
máscaras e bailes de carnaval – “carnaval” compreendido aqui, é claro, no
sentido veneziano, europeu.
Ela faz um balanço rápido de romances com essa
característica; dos títulos citados, os que sei que já foram traduzidos no
Brasil são Roxana (1724) de Daniel
Defoe; O Vigário de Wakefield (1766)
de Oliver Goldsmith; As Aventuras de Tom
Jones (1749) de Henry Fielding; Pamela
(1740) de Samuel Richardson; Fanny
Hill (1748) de John Cleland.
Na Inglaterra do século 18, muito mais do que no Brasil, os
bailes mascarados serviam como uma espécie de terra-de-ninguém onde a distância
entre as classes sociais era contornada, e não só ela: a distância entre nativos e
estrangeiros, homens e mulheres, velhos e jovens. A fantasia mascarada era uma
espécie de denominador comum a todos.
Segundo a Profa. Castle, o primeiro baile de máscaras
público dessa época foi promovido em Londres, no Haymarket, sob a direção do
empresário suíço “Conde” John James Heidegger. Um espetáculo noturno, realizado
em salões brilhantemente iluminados, aberto a todos que pudessem arcar com o
preço do ingresso e da fantasia.
Além das clássicas fantasias de máscaras-negras e dominós, fantasias
populares nessas ocasiões incluíam trajes estrangeiros exóticos, travestismo,
paródias eclesiásticas (de freiras e padres), trajes ocupacionais pitorescos
(pastores, leiteiras, etc.), assim como fantasias representando animais, seres
sobrenaturais, além de personagens históricos, literários ou alegóricos. (pag.
103)
Entre as décadas de 1720 e 1780 esses bailes se tornaram
“uma atividade irreprimível da vida pública urbana; não apenas uma diversão
popular a mais, mas o próprio emblema da modernidade, a chancela da moda, do
espetáculo e da excitação sub-reptícia”. Os bailes promovidos pelo Conde
Heidegger atraíam de 700 a mil pessoas nos anos de 1720; anos mais tarde, bailes
com venda de convites chegavam a ter dois mil participantes fantasiados.
A literatura da época (ela cita numerosas cenas,
capítulos dos vários romances) aproveita dramaturgicamente essas ocasiões para
intensificar a voltagem melodramática. Seduções, desvirginamentos, adultérios,
mal-entendidos, conspirações, tudo acontece durante essas noites ruidosas,
iluminadas, musicadas, em que ninguém reconhece ninguém e seja o que Deus
quiser.
Um recurso dramatúrgico notável é a transformação íntima
das pessoas (para além do mero fingimento) quando estão mascaradas e
fantasiadas, como se um espírito “de fora” se apossasse delas. O que sem dúvida
inspirou Oscar Wilde a dizer, um século depois: “Quer saber quem é uma pessoa,
dê-lhe uma máscara, e ela revelará seu rosto verdadeiro.”
Castle relaciona essa temática com as teorias da
“carnavalização” propostas por Mikhail Bakhtin, e atualmente muito estudadas no
meio acadêmico brasileiro, com a obra de Rabelais e de outros autores da
Renascença. Ela adverte:
O espetáculo popular enfatizava a união, reduzindo a separação; a
mudança, predominando sobre as formas fixas e imutáveis; e o caráter
eternamente incompleto do ser. Com o desenvolvimento das modernas noções de
individualismo, contudo (aquilo que Bakhtin chamava de “o ser completamente
atomizado” do racionalismo) essa metafísica popular viu-se superada. Um mundo
de indivíduos separados, sem semelhanças e sem conexão dialética uns com os outros,
assumiu seu lugar. (...) Enquanto os temas e as imagens do carnaval são
essenciais na obra de Rabelais e dos seus
contemporâneos, eles se tornaram circunscritos e problemáticos na literatura da
época seguinte, o Iluminismo. (pag. 117)
Literariamente, sugere Terry Castle, o emprego dessas
cenas de carnaval, com a profusão de detalhes, as técnicas de visualização, a
multitude de pontos de vista, as identidades imprecisas, o movimento constante,
deram aos autores europeus do século seguinte instrumentos para a criação, num
patamar mais elevado, das famosas “cenas de multidão” ou de “motins urbanos”
que recebe um tratamento mais complexo na obra de autores como Walter Scott,
Victor Hugo, Charles Dickens, George Eliot, Gustave Flaubert e Émile Zola.
Para o romancista do século 19, diferentemente de seus antecessores no
século 18, a transgressão não adota mais o formato de uma diversão inocente ou
descontínua. Pode-se sem dúvida indagar se ela não se tornou a preocupação
central, auto-consciente, da própria empreitada ficcional. (pág. 118).
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