Um dos períodos mais interessantes da literatura foi a segunda metade do século 18 na Europa, ou seja, mais ou menos entre 1750 e 1800. Por que? Porque nessa época, principalmente na Inglaterra, estava se consolidando uma forma de romance que, por motivos sociológicos variados, ganhou corpo ali de forma mais consistente do que em outros países onde as mesmas forças também atuavam.
Os autores são Daniel Defoe (1660-1731), Samuel Richardson
(1689-1761) e Henry Fielding (1707-1774), cujo enorme sucesso acabou de certo
modo produzindo um modelo narrativo que o romance ocidental ainda pratica largamente.
Alguém dirá: “Mas o romance ocidental foi explodido por
Marcel Proust e James Joyce, para não falar em David Foster Wallace e Thomas
Pynchon!”, e eu responderei: “Beleza, mas folheie os best-sellers atualmente em
cartaz e pense um pouco. O romance do século 18 pode não estar na cabeça dos
nossos autores vanguardistas, mas é o que está na cabeça da maioria dos
leitores, até hoje”.
Uma prova disso é o segundo livro em questão: Popular Fiction 100 Years Ago de
Margaret Dalziel (Cohen & West, 1957). O “cem anos atrás” dela se refere
evidentemente aos idos de 1850, e é justamente quando ela mostra o quanto
aqueles romances oitocentistas se fixaram na mentalidade do público leitor
inglês.
Ela examina principalmente os chapbooks, os livrinhos baratos que são o equivalente inglês à
nossa literatura de cordel (com a diferença crucial de que são escritos em
prosa, não em verso) e os penny dreadfuls,
pequenos romances de temática sensacionalista (crimes, aventuras, terror, etc.)
equivalentes aos nossos livros de bolso, e que deram origem a uma série de TV
com temática parecida.
Existem dois tipos de romance erudito. O meramente
erudito fica nas prateleiras dos críticos e professores: o Finnegans Wake de James
Joyce é o exemplo radical, um dos livros mais falados e menos lidos da
história, e cujo nome ficou para ser usado (como estou usando agora) como exemplo de livro “ilegível”
pelo povo.
Mas existe o romance erudito de sucesso. Refiro-me a
obras hoje consideradas Alta Literatura que exercem influência profunda ao
longo dos anos, inclusive sobre os leitores comuns. Há um lento derramamento
temático e formal desse romance para dentro da literatura popular.
Quando falo
em romance-erudito-de-sucesso não estou me referindo aos milhões de exemplares
de Dan Brown ou de Barbara Cartland. Refiro-me a livros “difíceis” como Grande Sertão: Veredas, que em 2019 chegou
à 22ª. edição, e que por todos os meios possíveis (crítica, cinema, TV,
universidade, etc.) entranhou-se na memória brasileira e vai influenciar até
autores que nunca o lerão. O mesmo vale para clássicos como Moby Dick de Melville, Crime e Castigo de Dostoiévski, Madame Bovary de Flaubert... São alta
literatura, mas são livros perfeitamente legíveis para um público de cultura
mediana.
Esse derramamento de cima para baixo não aconteceria se
tais romances não já se alimentassem de algo que lhes vem de baixo para cima. O resultado é que Dalziel analisa as formas populares de ficção em prosa circa 1850 e constata ali a presença,
reduzida a clichê, de inúmeros elementos narrativos cristalizados no século
anterior.
Existe uma zona cinzenta entre a Alta Literatura e suas
formas mais próximas do que chamamos literatura comercial, e que no século 19
era principalmente o romance folhetim. Autores considerados “grandes”
trabalharam sempre nessa zona intermediária: Dostoiévski, Charles Dickens,
Alexandre Dumas, Balzac.
Eles influenciaram essa “literatura popular” escrita às
pressas, por gente de menor talento ou menos preocupações estéticas. Autores hoje
anônimos, querendo botar algum dinheiro no bolso rapidamente; e dirigindo-se a
um público em busca de emoções fortes, um público masculino querendo ouvir
falar de ação e aventura, um público feminino querendo ouvir falar de amor e
casamento.
Margaret Dalziel examina esses romances onde retornam, o
tempo inteiro, a heroína de coração puro e origem humilde, o sedutor abastado e
de boa conversa, os pais alquebrados mas honestíssimos, os salteadores de
estradas, as aventuras náuticas, os sequestros (geralmente da própria moça), os
bebês abandonados que depois se descobre serem de sangue nobre, o sobrenatural
em forma de profecias e premonições, crises de remorso que levam à loucura ou à
morte, o triunfo da virtude sobre o vício.
É uma literatura fundada nas emoções, onde todas as
inverossimilhanças e coincidências são permitidas, se for para produzir um
“Oh!...” de espanto no leitor. As reações dos personagens são sempre as mais
exageradas. Dalziel observa que a heroína de Vice and Its Victim, or, Phoebe, the Peasant’s Daughter (1854) de
Thomas Peckett Prest, desmaia nada menos de 28 vezes ao longo do livro.
Essa narrativa que ganhou forma entre 1700-1800, ganhou
solidez e popularidade entre 1800-1900 e se impôs em escala planetária entre
1900-2000, graças principalmente às novas tecnologias como cinema, televisão,
rádio e histórias em quadrinhos. Veja-se que não me refiro apenas a
“literatura”, mas a “narrativa”. São formas que geralmente nasceram na
literatura, na prosa de ficção daquele época, mas transbordaram. Transbordaram
para os lugares mais inesperados.
A literatura de cordel nordestina, por exemplo, em seu
ciclo que eu chamo “Histórias de Amor e de Sofrimento”, é um prolongamento
óbvio dessa ficção européia. Basta dar uma olhada em clássicos como Os Sofrimentos de Alzira ou Os Martírios de Jorge e Carolina de João
Martins de Athayde, A Louca da Sepultura
ou O Valente Geniano e o Triunfo de
Rosina de Expedito Sebastião da Silva, A
Estória de Cecília Afra (Três Suspiros de uma Esposa) de Teodoro Ferraz da
Câmara e muitos, muitos outros.
O romance emocional europeu está todo aí. Seus clichês e
seus exageros acabam sendo diluídos quando transpostos para os versos
sertanejos, o olhar sertanejo, o contexto sertanejo que lhes imprime outros valores,
outros vieses, e onde aos elementos antigos europeus se misturam elementos
contemporâneos nordestinos.
Os livrinhos tipo Bianca
e Sabrina estão aí, com suas
histórias de amor, agora menos melodramáticas e aventureiras, pois pelo que
pude ver são narrativas urbanas contemporâneas sem flertes com o sobrenatural
ou o gótico; mas as estruturas morais e afetivas mostram uma continuidade
visível com as daquele romance.
E tem a dramaturgia da TV, as nossas inabaláveis novelas,
que beberam da fonte desses romances e dos enriquecimentos posteriores que lhes
fez o romance folhetim do século 19, principalmente numa verossimilhança maior
em relação a ambientes geográficos e urbanos (bairros, ruas, profissões e
ofícios reconhecíveis, contaminados todos pela voga da literatura realista), e
à tática infalível das narrativas que correm em paralelo e permitem sempre
terminar um episódio num momento de suspense (o famoso cliffhanger) para voltar a outra linha narrativa.
Um professor meu disse certa vez: “Nunca colha suas
idéias na televisão. Quando uma idéia chega na televisão, é porque já percorreu
todos os demais caminhos: o romance, o conto, o folhetim, o teatro, a ópera, o
cinema, os quadrinhos.”
E tudo começou na literatura. Porque a Literatura é
superior aos demais, é sagrada, é “outro patamar”? Não, apenas porque tudo que
foi falado acima se refere à Arte da Narrativa, e essa arte começou através da
palavra, falada e depois escrita. E a palavra é algo como o átomo de
hidrogênio: o elemento mais simples, mais frequente, mais adaptável, e que está
presente em tudo.
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