quinta-feira, 26 de março de 2020

4563) De Machado de Assis a Bertolt Brecht (26.3.2020)




Machado de Assis era um escritor capaz de condensar toda uma estética (se não uma ética inteira) numa única frase. Entre tantos exemplos, me vem de vez em quando à memória o comentário cruel de Brás Cubas, em suas Memórias Póstumas (1881).

Brás Cubas está no Alto da Tijuca, visitando D. Eusébia, uma senhora amiga da família, e começa a encompridar olhos para a filha desta, Eugênia, menina de dezesseis anos que ele chama “a flor da moita”. Em meio à conversa ele descobre, com direito a uma gafe, que a menina é coxa de nascença. E me vem com esta reflexão sublime:

“Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita?”

Não sei se tem nome esta figura de estilo, mas em literatura, onde tudo é nome, ter nome é o de menos. Chamo a esse artifício “A Ordem dos Fatores”, para fechar o meu raciocínio dizendo: em literatura, a ordem dos fatores altera, sim, o produto. (E completo, com certa ousadia: “Esta é a razão de ser da própria literatura”).

A respeito desse drible tipicamente machadiano, Flora Sussekind (em Cinematógrafo das Letras, 1987) lembra um comentário de Roberto Schwarz sobre os narradores da segunda fase de romancista de Machado:

Isto é, o narrador que a todo momento está se desidentificando da posição que ocupava na frase anterior, no parágrafo anterior, no capítulo anterior ou no episódio anterior. (...) É uma espécie de desidentificação permanente.

(em Machado de Assis: Antologia e Estudos, Ática, 1982)

Podemos começar um enunciado com A e terminá-lo com B; se invertermos o processo, as consequências serão outras. O que era premissa torna-se conclusão, e vice-versa. E a primeira lição que lucramos é: o primeiro termo é a concessão que fazemos ao interlocutor, é o elemento para o qual contamos com sua concordância tácita, para abrir o diálogo. O segundo elemento é o trunfo que estalamos na mesa, encerrando o assunto. Todo raciocínio assim é uma pequena armadilha retórica.

Bertolt Brecht, velho prestidigitador de dialéticas, maneja isto como ninguém. Veja-se este poeminha curto, que traduzi via inglês (“Everything Changes”), e que consta dos seus Poemas Americanos 1941-1947:

TUDO MUDA

Tudo muda. Você pode começar
tudo, de novo, com seu último suspiro.
Mas o que aconteceu, está acontecido. E a água
que você misturou ao vinho não pode ser
trazida de volta.

O que aconteceu, está acontecido. A água
que você misturou ao vinho não pode ser
trazida de volta, mas
tudo muda. Você pode começar
tudo, de novo, com seu último suspiro.

Nas duas vezes, é a palavra “mas” o gonzo em torno do qual o poema gira e mostra seu reverso. Isso é assim, MAS isso também é assado. O poeta sugere duas possibilidades, ambas plausíveis ao nosso senso comum. A primeira delas é o dado frio, objetivo, que o mundo nos propõe: a segunda é a nossa resposta, a linha de ação que decidimos seguir. Qual das duas ordens é a sua?

Brecht repetiu este artifício machadiano em pelo menos mais um poema, “Uma Cama Para Passar a Noite”, que também traduzi do inglês (“A Bed For The Night”), dos Poemas dos Anos da Crise, 1929-1933:

UMA CAMA PARA PASSAR A NOITE

Ouvi dizer que em Nova York
na esquina da Rua 26 com a Broadway
há um homem que fica durante os meses do inverno
pedindo aos transeuntes que passam por ali
um lugar para os sem-teto dormirem.

Isso não vai mudar o mundo.
Isso não vai melhorar as relações entre os homens.
Isso não vai abreviar a era da exploração;
mas
alguns homens vão ter uma cama onde passar a noite;
naquela noite, pelo menos, o vento não vai maltratá-los,
e a neve destinada a eles vai cair na calçada vazia.

Não abaixe o livro quando ler isto, leitor.

Alguns homens vão ter onde passar a noite;
naquela noite, pelo menos, o vento não vai maltratá-los,
e a neve destinada a eles vai cair na calçada vazia.
Mas
isso não vai mudar o mundo.
Isso não vai melhorar as relações entre os homens.
Isso não vai abreviar a era da exploração.

A estrutura é mais longa e complexa, mas o processo é o mesmo. O poeta enuncia duas verdades. Uma de ordem local, pessoal, meramente episódica; a segunda, de ordem impessoal e coletiva, tendo a ver com a situação social considerada de forma abstrata. E depois as inverte.

Muita gente, sabendo que Brecht foi comunista, vai dizer que ele menosprezava o episódio pessoal (a cama para passar a noite) e se preocupava apenas com as grandes mudanças sociais (o fim da era da exploração). Ou seja: que a mentalidade do poeta está reproduzida na segunda ordenação dos termos.

Em favor desta hipótese, há o fato de que foi a esse ponto de vista que o poeta deu a honra de “fechar”, sua argumentação com essas três linhas indignadas, implacáveis.

MAS essa interpretação talvez esteja esquecendo que Brecht, antes e acima de ser comunista, era um dramaturgo, e que um dramaturgo não lida com verdades abstratas, e sim com ações concretas. Ninguém pode colocar num palco “as relações entre os homens”, mas pode colocar um homem dormindo na calçada, sob a neve.

Essas idas e vindas permanentes entre idéias abstratas e cenas concretas são a base e o fundamento da dramaturgia de idéias. Acho que foi o cineasta Alberto Cavalcanti quem disse uma vez: “Você pode escrever um livro sobre o sistema nacional dos correios, mas se for fazer um filme, faça sobre o percurso de uma carta”. É o concreto, sem o qual não se chega ao abstrato – pelo menos nas artes da encenação.

E outra: Brecht não apenas lançava mão desse processo como o explicitava, mostrava, exibia despudoradamente ao escrever poemas desse tipo. Se isso, então aquilo. Se aquilo, então isso. Era parte do seu teatro, essa auto-denunciação, como um mágico-de-palco que fosse o “Mister M” de si mesmo e, no próprio momento do truque, explicasse à platéia o passo-a-passo do truque.

Como ele aconselhava aos seus atores: “Mostre que está mostrando”.


(London/New York: Methuen, 1987)