“Famigerado” é o segundo
conto do livro Primeiras Estórias
(1962) de Guimarães Rosa. Como já andei comentando por aqui, este livro foi
montado pelo autor a partir de contos que ele publicou no jornal O Globo ao longo do ano de 1961.
Contos publicados numa
página fixa na imprensa geralmente recebem um tamanho padrão. Ficam todos com
uma extensão mais ou menos a mesma, e é isso que ocorre com muitos contos deste
livro.
No curto espaço de oito
páginas (a média dos contos de Primeiras
Estórias) deverá, portanto, caber tanto uma história que aconteça ao longo
de anos quanto uma que decorre em poucos minutos.
É o caso de “Famigerado”.
O conto é narrado em primeira pessoa e se inscreve numa lista de textos que
resultam, imagino, das vivências de Rosa como médico do interior, e dos
“cáusos” que ele escutava dos capiaus dali. Claro que pode ser tudo invenção,
mas como sabemos da mania anotativa do autor e suas prodigiosas cadernetinhas,
vale supor que alguma coisa do conto lhe aconteceu.
O narrador começa
descrevendo a chegada, à sua casa, de um grupo a cavalo, no qual um indivíduo
se destaca, aproxima-se, puxa conversa. E o narrador diz, a certa altura:
Conservava-se de chapéu. Via-se que
passara a descansar na sela – decerto relaxava o corpo para dar-se mais à
ingente tarefa de pensar. Perguntei: respondeu-me que não estava doente, nem
vindo à receita ou consulta.
Ser médico no interior coloca
um indivíduo como o receptor de estórias, queixas, perguntas, fofocas, todo o
varejo de informações que circula por um povoado, e do qual o médico
rapidamente se torna um escoadouro natural. A ele tudo se pergunta, tudo se
conta.
Outras estórias roseanas, como
“Corpo Fechado” (Sagarana), derivam
visivelmente dessa condição do autor, de ter sido uma espécie de ouvidor geral
do vilarejo. O Doutor vira interpretador dos fatos, trazedor de notícias,
aconselhador, avalista de opiniões. E dicionário, também.
Todo o episódio das quatro
páginas e meia do conto resume-se a isto: Damázio, um pistoleiro temido naquela
região, ouviu dizer que um “rapaz do governo”, recém-chegado naquelas bandas, o
chamara de “famigerado”. Sem saber do que se tratava, resolveu pegar o cavalo e
ir ao vilarejo perguntar ao Doutor.
O Doutor, suando frio,
garante ao valentão que está tudo bem:
Famigerado é inóxio, é “célebre”,
“notório”, “notável”... (...) É “importante”, que merece louvor, respeito...
(...) [O] que eu queria uma hora destas
era ser famigerado – bem famigerado, o mais que pudesse!
A resposta dele não apenas
sossega o pistoleiro, como dá-lhe um polimento na vaidade, e ele agradece ao
médico, elogiando-o:
“Não há como que as grandezas machas
duma pessoa instruída!”
Isso é um conto? Eu diria que
é um daqueles episódios pitorescos de linguajar matuto que Leonardo Mota matava
em uma dúzia de linhas. É uma anedota, um “cáuso” – palavra, aliás, de
jurisdição mais mineira e paulista do que nordestina; nordestino nenhum diz que
vai contar um “cáuso”.
Guimarães Rosa tira um belo
copo de leite dessa pedra aparentemente invulnerável. Alguns detalhes são bem
saborosos: o primeiro deles é que Damázio não chega sozinho, mas acompanhado de
três outros cavaleiros que durante o diálogo ficam meio de banda, e parecem
contrafeitos:
Semelhavam a gente receosa, tropa
desbaratada, sopitados, constrangidos – coagidos, sim.
Não tarda que o Doutor perceba:
são três pobres coitados que Damázio, sabendo que sua honra parece estar sendo ameaçada
por uma palavra perigosa, trouxe ali sob ameaças, como testemunhas, para que
escutassem a definição a ser dada pelo Doutor. Resolvida a questão, o jagunço
autoriza:
Satisfez aqueles três: “-- Vocês podem
ir, compadres. Vocês escutaram bem a boa descrição...”
Logo nos primeiros
parágrafos do conto, Guimarães Rosa usa um curioso efeito cuja origem não sei,
mas lembro ter lido muitos anos atrás algum comentário dizendo que se trata de
um efeito linguístico de algum idioma africano.
Ele diz:
O cavaleiro esse – o oh-homem-oh – com
cara de nenhum amigo.
E mais adiante:
O medo é a extrema ignorância em momento
muito agudo. O medo O.
Acredito ter lido que essa
repetição de uma partícula, nesse formato A–B–A, corresponde, em alguma língua,
a um efeito de reforço, de intensidade. Como que colocando a palavra central
entre aspas, entre parênteses, entre book-ends.
Lembro disso porque associo
esse formato com um clássico da ficção científica "B", Ortog (“Aux Armes d’Ortog”, 1960), de Kurt Steiner, uma FC
misturada com espada-e-feitiçaria. O herói chama-se Dâl Ortog e, depois de uma
série de aventuras, e de ser submetido a testes de coragem e de habilidade, ele
conquista o que lá no universo deles equivale mais ou menos ao título de
cavaleiro. E passa a se chamar Dâl Ortog Dâl.
Não deve ser invenção de
Kurt Steiner (cujo verdadeiro nome, aliás, é André Ruellan). Desde que comecei
a escutar as canções de Gilberto Gil sempre me admirei da simetria do nome do
poeta (“Gil Berto Gil”), e semi-conscientemente considerei que ele seria um
cavaleiro espacial da mesma categoria heráldica de Dâl Ortog Dâl.
Quando Gil lançou em 1982
o álbum Um Banda Um, essa sensação
ficou mais forte, e acabou se reforçando mais ainda quando, pouco tempo depois,
lá por 1989, o grande Jorge Ben trocou seu nome artístico para Jorge Ben Jor (=Jor Geben Jor).
Os exércitos de Ortog desfraldavam seus estandartes ao sol, famigerados.
2 comentários:
Bah, Braulio, vc tira leite longa-vida de pedregulho.
Me ocorreu, agora, que o famigerado To be or not to be
talvez tbm pudesse se encaixar nesse seu feixe temático.
Boa tarde . Vc pode seguir o meu blog? Posso te seguir também. https://viagenspelobrasilerio.blogspot.com/?m=1
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