domingo, 3 de novembro de 2019

4519) "Bacurau" e a caçada humana (3.11.2019)



O filme Bacurau (2019) de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles é todo construído em torno de um conceito que, embora familiar a muitos leitores de ficção científica, soa estranho a uma parte do público: é o conceito do “safari de caça a seres humanos”.

Ouvi comentários de que aqueles gringos armados de drones e fuzis telescópicos seriam a ponta-de-lança de uma tentativa de invasão militar do Brasil, e que não fazia sentido algum tentarem invadir um lugar tão insignificante como Bacurau. Ou de que teriam sido contratados pelo prefeito do município, o impagável Tony Jr., para eliminar aquele lugarejo, que era uma pedra em seu sapato.

Para mim não é nada disso. São caçadores mesmo, e o descompasso entre sua tecnologia e o armamento rústico do povo de Bacurau nos leva a vê-los quase como viajantes no Tempo, o que me evocou o conto “Vintage Season” (1946) de Lawrence O’Donnell, onde visitantes do futuro vêm à nossa época para presenciar um dos mais belos crepúsculos da História e em seguida a queda de um meteorito que traz incêndio e destruição.­

O aspecto principal do conto é a indiferença desses viajantes do futuro pelas populações locais. Aquilo é uma viagem deles, um passeio deles, e as mortes daquelas pessoas em volta não contam para nada.

É a mesma atitude sádica, anti-empática, dos caçadores-de-gente em tantas outras narrativas.

Um clássico do gênero “caçada humana” é o romance The Sound of His Horn (1952), de Sarban (pseudônimo de John William Wall, 1910-1989). Numa linha temporal em que Hitler ganhou a II Guerra, o protagonista vai parar numa casa de campo de oficiais nazistas, onde o passatempo é organizar caçadas, à maneira das caças à raposa, onde as presas são mulheres adornadas com plumas de pássaros.


A primeira vez que me deparei com esse conceito, e que me chocou bastante, foi num conto de George Hitchcock, “Um convite à caçada”, onde um novo-rico vai morar num condomínio de gente endinheirada que o esnoba.  Certo dia, ele recebe convite para participar de uma caçada. Fica exultante por estar finalmente sendo aceito pelas “pessoas diferenciadas”; compra botas, casaco, etc., mas no dia marcado é arrastado da cama, jogado de cueca no meio do gramado, e lhe dizem: “Agora corra!”  E ele começa a correr, porque já escuta o som das trompas de caça.

Este conto está na antologia de Alfred Hitchcock Histórias Que Mamãe Nunca Me Contou.



Caçar gente é privilégio de gente rica e poderosa, uma sensação mais refinada do que a de caçar meros leões, meros rinocerontes em extinção.


Outros autores de ficção científica projetaram esse esporte brutal no meio da metrópole. É o caso de Robert Sheckley e seu clássico “The Seventh Victim” (1953), onde a caçada é organizada num jogo onde as pessoas inscritas agem sucessivamente como caçador e caça, ambos sendo sorteados e ambos com o direito de matar o outro, mas só o caçador conhece a identidade do outro antecipadamente.

O conto de Sheckley foi adaptado por Elio Petri em 1965 como A Décima Vítima, num filme que teve como protagonistas Marcello Mastroianni e Ursula Andress.


Note-se que mesmo quando a ambientação é numa linha temporal diferente da nossa, não se trata de batalhas – como acontece na série Jogos Vorazes, ou na japonesa Battle Royale. São esportes, onde há uma definição muito clara de que “A” é o caçador, com direito de matar, e “B” é a vítima, a quem cabe defender-se, ou fugir como puder.

Fui dar uma pesquisada e acabei descobrindo que o “paciente zero” desse subgênero é provavelmente um conto de Richard Connell, “The Most Dangerous Game” (na revista Collier’s, 1924). 

O conto já foi adaptado e “ripado” várias vezes pelo cinema, TV e rádio.  As adaptações mais conhecidas talvez sejam The Most Dangerous Game (1932) de Ernest B. Schoedsack e Irving Pichel, e A Game of Death (1945) de Robert Wise.


Na história de Connell, um famoso caçador norte-americano, Rainsford, está viajando de navio quando cai acidentalmente ao mar, e nadando vai parar numa ilha misteriosa, onde é recolhido na mansão do General (no filme, o Conde) Zaroff – que o reconhece. O conde explica que foi morar naquele lugar remoto porque ali, depois de ter caçado os animais mais perigosos de todos os continentes, ele pode se entregar sem problemas ao seu esporte atual: a caçada de seres humanos.

[O animal que eu caço], disse o General, me proporciona a caçada mais excitante que há no mundo. Nenhum outra se compara. Caço diariamente, e nunca fico entediado, porque tenho uma caça cuja esperteza se compara à minha. (...) Quais são os atributos da caça ideal? E a resposta, claro, é esta: Ela deve possuir coragem, sagacidade, e, acima de tudo, deve ser capaz de raciocinar.
(trad. BT)

Zaroff explica que como são frequentes os acidentes marítimos na região, muitos náufragos à deriva vêm parar na ilha, onde são aprisionados, alimentados, bem tratados. Mas servem de caça quando o Conde quer se divertir um pouco. Ele chama Rainsford para participar; o outro se horroriza e se recusa, dizendo que não quer tomar parte em assassinatos a sangue frio. O General-Conde dá uma gargalhada.

Como o senhor é engraçado! Nenhuma pessoa de hoje em dia espera encontrar um jovem da classe bem educada, mesmo na América, com um ponto de vista tão ingênuo, e, se posso assim dizer, meio vitoriano. É como encontrar uma caixa de rapé no interior de uma limusine. Ah, sem dúvida o senhor tem antepassados puritanos! Acontece tanto na América! Mas aposto que esquecerá essas noções quando sair à caça comigo. Tenho à sua espera uma emoção completamente nova, Mr. Rainsford.

Ele se recusa novamente, com mais veemência. E o Conde diz: “Bem, eu lhe chamei para participar como caçador. Já que não se interessa, vai participar como caça.”

E aí começa a luta de esperteza e crueldade entre os dois.



O conto é de 1924 (não é difícil encontrar cópias em PDF na web), foi adaptado para cinema e TV, copiado, imitado e plagiado à vontade.

O que Bacurau reforça, nesse subgênero, é o ponto de vista da caça, e o fato de que o esporte já não decorre às escondidas, numa ilha remota, mas ganhou a forma de um esporte organizado. Cada vítima abatida conta um determinado número de pontos, e os caçadores se dirigem para uma região tão insignificante do ponto de vista geopolítico que a morte de algumas dezenas de pessoas não vai incomodar ninguém. E provavelmente (esta é uma parte em que o roteiro mostra algumas lacunas) tem apoio da Prefeitura local, a qual se livra de um reduto de gente indócil e de oposição (onde inclusive se geram bandidos perigosos) e talvez receba alguma compensação material.

Em Bacurau, o povoado é eliminado, primeiro, dos mapas eletrônicos, e depois começa a matança, que idealmente prosseguiria até atingir um limite, ou não deixar ninguém vivo no local. Mas – como o filme é narrado do ponto de vista da caça – as coisas não fluem com tanta facilidade, porque a caça – como diria o General Zaroff – é corajosa, é esperta, e sabe raciocinar.








Um comentário:

Paulo Rafael disse...

Todos os filmes do Predador são do mesmo tipo, caçada humana.